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Críticas

Cineplayers

Um grande filme simples.

8,0

Um homem de descendência italiana, que habita a Nova York dos anos 50, ainda solteiro com 34 anos. A sociedade de hoje pode enxergar com naturalidade a solteirice longeva, mas numa época como aquela, era também sinônimo de sucesso ter mulher e filhos, além de alguma estabilidade financeira. A tradição dos italianos e seus descendentes, da valorização da família como entidade fundamental na construção de uma trajetória e no prosseguimento de um legado (de certo modo, isso mudou pouco de lá pra cá), também favorecem o tom de absurdo das primeiras falas ditas em Marty. O jovem açougueiro é condenado abertamente, inclusive por seus clientes, por não ter se casado ainda e ter sido deixado para trás por seus irmãos e irmãs, que a essa altura da vida já haviam constituído família. Não interessa se Marty é um bom rapaz (como é atestado incessantemente ao longo do filme); o que realmente importa é que ele é só e esta é a principal definição de sua personalidade, ao menos no que interessa ao olhar alheio.

Tal olhar guiará a princípio a narrativa do filme de Delbert Mann, que gradativamente se aproximará da essência real de seu personagem, em detrimento da opinião pública sobre ele e sua postura. Marty parece, em primeira instância, pouco se importar com o estereótipo que todos pedem para ele, mas na verdade se encaixa como todo ser humano na condição de ser influenciado por seu meio e pelos pensamentos derivados dele. Marty se preocupa com o bem estar de sua mãe, com um futuro confortável que pode ser proporcionado pela aquisição do açougue onde trabalha, no qual Marty cuida inclusive da contabilidade. Mas, acima de qualquer coisa, Marty também deseja pertencer, seja para se tornar um homem casado, seja para parar de ouvir os questionamentos preconceituosos das pessoas que o rodeiam, seja para satisfazer a vontade da mãe, seja para deixar de ser só. Marty é um personagem completamente rendido à solidão absoluta de sua existência. E somente um outro ser só poderá compreender o que de mais profundo existe dentro dele.

É possível afirmar que Marty seja o primeiro filme como estudo de personagem a ganhar o Oscar de Melhor Filme. Em A Malvada (All Aboute Eve, 1950), por exemplo, já havia um interesse na observação de um ser humano e suas transformações, tanto no que dizia respeito à Margo Channing, quanto à Eve Harrignton, mas o cerne da trama era mesmo o estudo da ambição e um painel sobre o cenário artístico. Marty é exclusivamente sobre um personagem e sua situação emocional. Ainda que esteja inserido num momento histórico e num contexto social específico que acabam ajudando a definir o aspecto no qual a narrativa é erguida, o filme é baseado primeiramente na condição de solidão do personagem e como ela servirá como parábola dramática para sua evolução. Marty é centro do mundo que o filme explicita e é nele que teremos fincado nosso ponto de foco de toda a trama.

Marty é também o primeiro campeão do Oscar a inovar na linguagem, no modo de construção de sua narrativa. E impressiona o reconhecimento da Academia a uma obra sutilmente vanguardista como é Marty (novamente, uma vanguarda bastante leve, que talvez nem devesse receber essa classificação, mas que por ser vista num cinema tão predominantemente clássico-linear como era então, é realmente notável). O filme se passa ao longo de pouco mais de 24 horas na vida de Marty, um final de semana de trabalho, encontros com os amigos, problemas familiares e compromissos tradicionais que pontuariam normalmente sua vida. De certo modo, o filme só tem elipses funcionais, mas que dão a impressão de que estamos diante de uma narrativa em tempo real. Tudo que de relevante acontece nessas horas na vida do personagem, é mostrado para o público, para que seja criada a proximidade entre espectador e personagem de imediato; para que seja vivida por quem vê, o que Marty vive naqueles momentos. E mesmo com tamanha proximidade, Delbert Mann sabe o momento de tomar distância do que está sendo enquadrado, como quando filma de longe uma mulher ser descartada num baile. O constrangimento dela seria notado de todo modo, sem que fosse necessário um close da câmera, ressaltando sua dor. Esse tipo de respeito por seus personagens eleva o trabalho de Mann a um patamar mais adequado ao tipo de desenvolvimento artístico que propõe.

Quando Marty conhece Clara, é nítido o encontro quase cósmico que se dá diante dos olhos do espectador. Porém, isso só parece tão evidente por conta da bagagem que trazemos conosco para perceber esse tipo de ligação, já que o filme não ressalta em nenhum dos primeiros momentos dos dois juntos um direcionamento de olhar romântico. O filme leva o público a colaborar com sua construção, a ser gentil com os personagens e compreender o que eles podem estar passando. Não é necessário mastigar informações, já que a lógica que o encadeamento das cenas estabelecer dará conta do total entendimento da condição de seus personagens. Clara passará a olhar para Marty com admiração à medida que os dois forem caminhando pelas ruas; Marty falará sem parar e somente este gesto será o bastante para que seja compreendido que ele se sente confortável ao lado de Clara para ser ele mesmo. Quando estão os dois juntos em cena, existe uma naturalidade no próprio jogo entre os corpos, no modo como Marty encara Clara para depois olhar para o lado. É como se os personagens tivessem que caber dentro do outro, para que exista uma eloquência nos movimentos e que assim se tornem precisos, dentro de suas articularidades. Marty pertence a Clara assim como Clara pertence a Marty. E isso não é mostrado em nenhuma cena apotéotica, com o pôr-do-sol como pano de fundo.

A singeleza e sinceridade no lido com os personagens e o respeito mostrado pela existência física de algo tão abstrato como a solidão, podem ser alguns dos fatores responsáveis por Marty ter sido notado em meio a tantos filmes simples como ele, mas simplórios. O projeto do filme ganhou vida nas telas depois da produtora de Burt Lancaster e Harold Hecht precisar de um fracasso comercial, para que não desse prejuízo no pagamento de impostos. Acontece que o tiro saiu pela culatra e Marty, além da recepção calorosa, ganhou quatro Oscars e a Palma de Ouro em Cannes (até hoje, único caso na História). Seria leviano dizer que o resultado de uma tentativa de fracasso surgir como um sucesso retumbante é uma fina ironia para a felicidade impregnada no rosto de Ernest Borgnine ao deixar Clara em sua casa; mesmo o que parece não seguir o curso natural da expectativa se revelará, no final de tudo, como a única solução para o êxito. Marty parecer tão simples, tão evidente e tão fora de moda fazem dele, ainda hoje, e cada vez mais transgressor, complexo e fascinante.

Comentários (1)

Alexandre Marcello de Figueiredo | quarta-feira, 02 de Janeiro de 2013 - 19:27

Gostei do filme. Singelo, simples e ainda ganhou o Oscar de melhor filme. Marty com seu jeito de bom moço tímido conquistou a todos.

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