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Críticas

Cineplayers

O medo como um vírus social.

8,0
A certo momento do filme, uma das amigas da protagonista Bia relata o assassinato da atriz Daniella Perez pelo ator Guilherme de Pádua e sua esposa Paula Thomaz, que chocou a sociedade nos anos 90, em uma época em que o próspero bairro da Barra da Tijuca, onde o grupo central das personagens adolescentes da trama mora e estuda, praticamente inexistia depois de uma suas localidades mais famosas, o Barra Shopping. Bairro de classe alta que atrai cada vez mais investimentos da iniciativa privada, a locação do crime continha todos os elementos de uma notícia sensacionalista: juventude, classe alta, conflitos conjugais do casal criminoso e um assassinato no clímax. 

Essa narrativa viciada que impregnou a leitura dos fatos reais domina todos os personagens em Mate-me Por Favor, que encontram justamente o contrário em suas rotinas, perturbados pelo "oásis de horror em meio a um oceano de tédio" das grandes metrópoles. Perdidos em uma rotina repetitiva que envolve as obrigações na escola, a descoberta sexual, as válvulas de escape com as conversas nas horas vagas, as festas de praxe, a apatia caseira e a doutrinação conservadora na igreja - o filme mostra a ascensão das igrejas evangélicas neopentecostais em conjunto com o crescimento vertiginoso da acumulação de capital e a acentuação da estratificação social no bairro - o grupo central e principalmente a protagonista Bia mostram uma crescente incompreensão e posteriormente obsessão com uma série de estupros seguidos de assassinato de mulheres ocorridos no bairro da Zona Oeste do Rio.

Se Mate-me Por Favor de início faz um pastiche das comédias escolares e seu microcosmo regido por impulsos e disputas, logo após pequenas perturbações constantes assume a chave de filme de terror sutil, com o clima de medo instaurado entre as colegiais que veem-se sozinhas e sem respostas em um lugar onde a criminalidade só cresce e as promessas ainda estão no horizonte - das figuras religiosas que organizam vigílias de luto e militam por respostas imediatas para o crime e o próprio progresso capitalista, que ainda não assegurou o paraíso de ricos: a Barra ainda apresenta quilômetros descampados de canteiros de obras e lugares que são apenas pontos de travessia para o transporte. Os responsáveis pelos adolescentes são figuras ausentes que mal chegam a aparecer na trama, e igualmente falham em oferecer conforto e estrutura. A população jovem é exposta a um massacre sem trégua que se espalha de maneira implacável entre todos os seus personagens. Logo, o medo do perigo passa a ser ainda mais letal que o perigo em si. 

O vírus da insegurança é rápido e certeiro; além de cama para inúmeras imagens alucinatórias descoladas da narrativa, logo marca todas as suas personagens com cicatrizes doloridas de personagens que a todo tempo estão testando os próprios limites em brigas esquentadas, em exposições desnecessárias ao perigo, em relações que misturam libido e estresse. Em meio ao afunilamento de possibilidades, a monotonia acompanha de maneira insuportável - caminhando em igual ritmo com a violência, vemos as paisagens silenciosas, sombrias, que se perdem no horizonte, amálgama de natureza e intervenção humana, terra e grama, concreto e metal, refletindo nos personagens que cumprem dia após dia suas obrigações enquanto saboreiam uma maré de impulsos e emoções que os consomem. 

As transformações sociais e seus afetos introspectivos provocadas pelo urbanismo voraz já haviam sido tema de abordagem em outro terror social brasileiro, O Som ao Redor (idem, 2012) de Kléber Mendonça Filho, onde a narrativa modulada pelo som mostravam um mundo desconhecido, mas que gemia constantemente nos inconscientes de seus protagonistas. Aqui, os frangalhos de narrativa se costuram pelo carnaval pictórico de bizarrice, perturbações envolvendo sangue, desejo, tradicionalismo e silêncio, irmanando-se pela construção de atmosfera sintomática de medo de uma violência sem forma, sem rosto, sem explicação. Sem narrativa. Sem um "cinema clássico" atrás de si.

O terror psicológico desmontado propulsionado por fatores sociais é um construto de um novo cinema brasileiro que se forma no horizonte - outro filme, Trabalhar Cansa, tinha uma narrativa até mais fechada na perseguição pelas sombras de não se sabe o que - e articulam-se como mais questionamentos de consciência a uma sociedade que trata tudo, incluindo sexo e morte, de maneira espetacular, desenhando histórias, personagens e climaxes em ciclos viciosos de desejo e medo que nunca respondem em si. Essa modalidade particular de cinema assume-se como afetada por isso em seu regime de imagens, na sua construção de medo contemplativo, como a ferramenta de reflexão ao próprio final do filme - aberto, ameaçador, provocante. De onde vem o terror? E como construímos nosso próprio vírus autodestrutivo? O pedido do título, desenvolvido no filme, mostra: não há resposta óbvia. Sobra a catarse sensorial, sempre ela, afetos perturbadores do imaginário disforme de uma época ambígua e peculiar.

Comentários (2)

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 09 de Outubro de 2015 - 09:46

Vejo qualidade nos atuais filmes brasileiros...
Temas pertinentes...boa técnica cinematográfica e coragem suficiente para tocar feridas sociais
abertas há muitas gerações...

O que falta é mais recurso e atores com mais experiência em cinema...

O curta Arapuca de 2013, por exemplo, mostra o imenso potencial dos jovens cineastas brasileiros...

http://filmow.com/arapuca-t87756/

Victor Narciso | segunda-feira, 19 de Setembro de 2016 - 18:17

Acho uma boa época pra upar essa crítica no site. O filme estreou essa semana e é relevante demais pra passar despercebido (assim como a excelente crítica disserta).

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