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Críticas

Cineplayers

Vencedor do Oscar de melhor filme, esta obra de William Wyler é, como comumente descrito, "edificante".

9,0

A premiação do Oscar é mesmo engraçada. Indiscutivelmente a mais relevante e midiática de todas as competições do cinema, sobretudo a que mais gera discussão. Debater se os filmes premiados pela academia são realmente os melhores é conversa que vai longe. O fato é que, curiosamente, certas obras finalistas na categoria de melhor filme, embora sem conseguir levar o grande prêmio, ficaram para a história e são sempre lembradas, além de figurarem constantemente nas listas das melhores produções já realizadas, ao contrario do filme que levou a melhor.  E logo aqueles que seriam tidos como seus algozes, ou seja, os filmes que ganharam a principal estatueta da noite (sem talvez ter a mesma qualidade), por vezes acabam caindo no ostracismo.

Quem não conhece ou apenas reconhece a qualidade de filmes clássicos e que sempre são apontados como alguns dos mais importantes de todos os tempos, como Cidadão Kane, Laranja Mecânica, Touro Indomável, Apocalipse Now ou A Felicidade Não Se Compra, filmes que perderam o Oscar? Agora, repito a mesma pergunta para Como Era Verde Meu Vale, Operação França, Gente como a Gente, Kramer vs. Kramer e Os Melhores Anos de Nossas Vidas, estes sim ganhadores. Teriam eles o mesmo prestígio e popularidade? Acredito que a história fez justiça ao primeiro time. Mas fica a pergunta: o que dizer de um filme que tirou a estatueta de A Felicidade Não Se Compra, clássico natalino e edificante de Frank Capra, uma unanimidade absoluta entre público e crítica, entre editores e leitores do Cine Players, o filme favorito de cineastas como Steven Spielberg, o mais reprisado da história da TV americana, entre tantos outros atributos? Que produção teria sido capaz de ter tirado o Oscar de melhor filme de uma obra de tamanho valor, tão importante e duradoura? É justamente sobre o filme que “roubou” o Oscar do filme de Capra que esta crítica se direciona.

Assim como abordado em outro grande injustiçado citado acima, Apocalipse Now, o tema central de Os Melhores Anos de Nossas Vidas é a inadequação, a desordem na sociedade e na psique que a guerra pode gerar. Como vivenciar um conflito armado faz com que veteranos tornem-se pessoas deslocadas de seu papel na estrutura social, e o trauma e o desajuste que um evento desse tipo pode causar na mente de quem passou por esta experiência. Dirigido por William Wyler, que anos mais tarde realizaria Ben-Hur, a trama concentra-se em três personagens que retornam do front da Segunda Guerra Mundial direto para a cidade natal. Já estamos no pós-guerra, anos se passaram, e o cenário o qual deixaram antes de partirem para o conflito tornou-se bem diferente. Tanto no que se refere aos relacionamentos pessoais e familiares, quanto ao macro-ambiente, a economia, o mercado e a demanda profissional. Assim como passar anos em coma ou cumprindo pena na prisão, o filme demonstra o quão alienante pode ser ter de passar anos em combate.

Não só alienante, mas acima de tudo cruel e com marcas irreversíveis. Os “rastros de ódio” da guerra são logo visualizados pela imagem chocante do personagem do ator ganhador da estatueta do oscar Harold Russell. Não conhece este ator? Também pudera! Harold Russell não chegou a se tornar ator profissional, mas foi escalado para ser um dos três protagonistas do filme, pois, quase como um personagem real, combateu na Segunda Guerra e teve suas mãos amputadas. Interpretando um papel que passa a conviver com a mesma deficiência, sua participação nesta película é algo no mínimo tocante. Ao estar diante da dificuldade do personagem de lidar com uma nova realidade, com a aceitação da esposa perplexa com a nova situação do marido e levar em conta que na verdade trata-se de um ator com essas mesmas características é absolutamente sensibilizador, ainda mais quando o personagem decide praticar piano. Haverá maior testemunho contra os horrores da guerra, libelo anti-belicista maior no cinema do que este?

Os outros dois personagens são o ex-sargento Al Stephenson (Frederich March), que ao voltar pra casa encontra seus filhos crescidos que mal reconhecem sua paternidade – gerando um esperado conflito de gerações. Além disso, vivencia o explícito preconceito contra ex-combatentes, inclusive pelas instituições financeiras. E por último Fred (Danna Andrews), ex-piloto de bombardeios, que apesar de sua importante atuação na guerra, passa a ser recusado de emprego em emprego por não ter qualificações e experiência suficiente. Seu casamento entra em crise, pois Fred passa a se tornar um marido inaceitável, afinal, sua esposa não consegue enxergar como pode encontrar em um desempregado e mais novo “Zé Ninguém” um homem em quem confiar e sentir amparo e segurança.

Esse registro do pós-guerra, diferentemente do filme espetáculo que mostra cenas de combate, faz lembrar a obra de Dalton Trumbo. Também neste filme, por meio da introspecção do combatente, aliado ao sofrimento físico e mental irreversíveis é que o cineasta busca a redenção e faz alarme para o que verdadeiramente consiste uma guerra. Em Johnny Vai à Guerra (Johnny Got His Gun), Trumbo leva para a projeção um veterano que perdeu todos os membros, a visão, a mandíbula e toda a capacidade de expressar-se e de se relacionar com o mundo exterior. A única coisa que lhe restou foi o pensamento, isolado na eternidade da escuridão e do silêncio. Este filme especificamente chegou até a ser fonte de inspiração para a banda Metallica na composição da música “One”, onde, em primeira pessoa, a banda tenta por meio da música expressar a angústia do ex-combatente. Dentre tantos outros filmes de guerra, ao ver este de William Wyler é bastante lógico lembrar de Nascido para Matar de Stanley Kubrick.

Não deixa de ser irônico o filme ter o nome "Os Melhores Anos de Nossas Vidas". Afinal de contas, é de se esperar que, ao sair de uma guerra, chegue-se a luz no fim do túnel, ao dia ensolarado depois da tempestade. Mas, diante dos valores deste mundo, que mérito real há de ter o ex-participante de uma matança? Por mais estranho que possa parecer, o filme particularmente me remete diretamente a obra de Franz Kafka. Afinal, do que fala o livro A Metamorfose senão a resistência da sociedade, ou melhor, de todos nós, em aceitarmos a diferença do outro e porque não em nós mesmos? Como é simplesmente inaceitável, insuportável, intragável ter aquiescência com uma suposta aberração – um desqualificado, um desajustado, um desempregado, uma deficiência. O filme leva a questão inevitável: o que é preciso ser para ser considerado um ser-humano? Trabalhar, estar bem inserido no chamado “mercado de trabalho”? Um bom currículo? Ter patrimônio? Uma relação familiar e amorosa estável? Uma pátria para honrar? De que adianta dar a vida pela pátria, se esta logo em seguida não lhe é grata? Esta crítica, assim como o filme, traz muito mais perguntas do que respostas, pois Os Melhores Anos de Nossas Vidas é um filme de reflexão inevitável. A resposta, parafraseando o que cantava Bob Dylan anos mais tarde, “is blowing in the wind, the answer is blowing in the wind.” ["está soprando no vento, a resposta está soprando no vento"].

E por que não parafrasear também Elton John, que na canção “Daniel”, que assim como o filme é inspirada no retorno de combatentes de guerra, diz “Do you still feel the pain of the scars that won't heel? You’re eyes have died, but you see more than I” ["Você ainda sente a dor das cicatrizes que nunca curam? Os seus olhos morreram, mas você vê mais do que eu"]. Enfim, se este não é um filme com a imortalidade de A Felicidade Não Se Compra, certamente é um retrato inesquecível para quem vê. Muito mais do que uma curiosidade histórica, é plausível atribuí-lo o adjetivo mais comumente empregado para descrever o filme de Capra: estamos diante deu um filme “edificante”.

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