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Críticas

Cineplayers

“Esse maldito país nos destruiu!”

8,5
O tempo tem um efeito muito imprevisível sobre o cinema. Cada filme adquire ao longo dos anos uma nova identidade, um fator histórico proporcionado pelo distanciamento do tempo, que o redefine, o ressignifica e, curiosamente, acaba por potencializar ou apagar tudo o que ele foi ao nascer. É algo muito próprio das artes em geral, que costumam refletir o seu próprio tempo e geração, como faz tão bem o pequeno-grande-filme de Stephen Frears, Minha Adorável Lavanderia (My Beautiful Laundrette, 1985). Se quando lançado foi um filme recebido com muitas ressalvas, como um filho direto da nova onda britânica que nas décadas anteriores havia colocado o cinema inglês em evidência, hoje é um dos retratos mais completos do Reino Unido nos anos Thatcher, desde sua geração jovem até a crise econômica agravada pela presença de estrangeiros. 

Muitos teóricos no cinema afirmam que nunca existiu de fato uma identidade ou movimento unificador que desse uma forma concreta ao cinema inglês, sempre muito atrelado às adaptações literárias de época, mas nomes como Lindsay Anderson, Ken Russell, Tony Richardson e Karel Reiz realizaram entre as décadas de 1960 e 1970 todo um conjunto de obras que caracterizaram uma personalidade muito peculiar que foi absorvida por Frears em Minha Adorável Lavanderia, um filme que pode ser considerado como resultante da soma de influências das obras desses mestres. O encontro entre imagens mais cruas, narrativa fragmentada, dramaturgia naturalista, temas pesados e histórias de jovens rebeldes e raivosos formam a base para esse cinema e para o filme em si. 

O contexto social e político obviamente também contribuiu para a criação dessa história sobre uma família paquistanesa que faz fortuna em Londres, mas que ainda sofre com os efeitos do preconceito, xenofobia, violência e crime. Dois irmãos, Papa (Roshan Seth) e Nassar (Saeed Jaffrey), um socialista e idealista que sonha em ver o filho se libertando da ganância do país capitalista para se dedicar aos estudos, outro ambicioso que dominou o distrito com inúmeros comércios e negócios escusos, distanciam-se pelas diferenças quando chegam ao Reino Unido. Entre eles, o protagonista Omar (Gordon Warneck), filho do primeiro e sobrinho do segundo, que recebe a tarefa de administrar a lavanderia do tio, mas ao mesmo tempo se vê apaixonado por um colega de infância que reencontra depois de adulto, o punk Johnny (Daniel Day-Lewis). 

A partir do reencontro dos dois, Frears desenha todo um mosaico complexo e singelo sobre a juventude inglesa dos anos 1980, marcada por violência e insubordinação. A Inglaterra vivia o início e auge do movimento punk, representado no personagem de Daniel Day-Lewis, um rapaz carente e agressivo que procura fugir do passado de crimes e vê em seu amor de infância um motivo para viver. No roteiro, o escritor britânico Hanif Kureishi usa de sua ascendência paquistanesa para tratar com propriedade todo o drama dos imigrantes que fugiam de sua terra natal depois de a religião muçulmana passar a interferir na política e impor um regime cruel e autoritário no Paquistão. Mesmo na relação interracial e homossexual entre Omar e Johnny essas questões se revelam, com o primeiro confessando prazer na autoridade de patrão que tem sobre o segundo, em resposta aos anos de preconceito que sofreu na escola entre os meninos brancos que hoje se encontram em maioria desempregados e sem perspectivas.  

No entanto, está na visão da geração anterior o maior contraste que Frears explora. Em determinado momento, quando os irmãos se reencontram após anos de silêncio e ruptura, Papa lamenta que a ida para Londres tenha transformado sua família em uma marionete capitalista mafiosa, com a identidade anulada diante da cultura ocidental. Por outro lado, Nassar se descreve em dado ponto como um profissional homem de negócios, não um profissional paquistanês, concluindo que não há questão racial na nova cultura empresarial britânica. Quase uma década mais tarde, o diretor Ang Lee traçaria um retrato muito parecido com outro romance gay, O Banquete de Casamento (Hsi Yen, 1993), no qual trata do drama dos chineses que imigraram para os EUA em busca de novas oportunidades, mas que invariavelmente lamentavam que as gerações mais novas esquecessem suas origens para se deixar levar pelo modo de vida americano. 

Hoje podem parecer estranhas as opções visuais e narrativas de Frears, sempre cortando as cenas nos momentos mais incisivos ou se dispersando nos dramas de personagens periféricos, mas Minha Adorável Lavanderia é também um desses filmes citados no começo do texto que se potencializam com a distância do tempo, se revelando um retrato completo e agridoce da Inglaterra dos anos Thatcher, além de resultado da soma de todas as tradições da Nova Onda Britânica, o principal movimento cinematográfico inglês. Para quem ainda não conhece essa pequena pérola, vale lembrar que está sendo lançada pela primeira vez no Brasil em DVD pela Obras-Primas do Cinema, em versão restaurada e com entrevistas com diretor, roteirista, diretor de fotografia e produtores nos extras. 

Comentários (1)

Bernardo D.I. Brum | segunda-feira, 18 de Fevereiro de 2019 - 17:36

Tenho separado para ver há anos hahaha depois de ler animei. Valeu pelo incentivo que faltava, Heitor!

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