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Críticas

Cineplayers

Filme incontornável e imprescindível.

9,0

O encontro entre o prolixo romancista Camilo Castelo Branco (mais de 100 livros publicados) com o prolífico cineasta chileno radicado na França Raúl Ruiz (111 filmes no currículo) resultou numa obra colossal, não só pelo tamanho (4h15min de duração), mas pela amplitude na qual o cinema barroco, meticuloso e cerebral de Ruiz se encontrou com a escritura folhetinesca romântica, de um sentimentalismo que por vezes beira o surreal, do autor português. O resultado é algo próximo entre o melodrama social e o romance gótico, nas palavras do diretor. Foi o último filme de Ruiz e, para a maioria dos críticos, sua melhor obra.

Seria um erro tentar determinar o que é barroco no cinema, essa manifestação comercial sujeita a todo tipo de interferências, citações, adaptações, fulminada de citações das mais variadas - ainda mais de um cineasta que filmou tanto -, mas não há como resistir em se tratando de uma obra como a de Raúl Ruiz. Estão lá as narrativas labirintíticas, as personagens excêntricas e os cenários trompe d'oeil, ou seja, de tão detalhados e ricos dão a impressão de estar em três dimensões ou, na maioria das vezes, fora de perspectiva, aparentam serem bem maiores, profundos e sem fim do que na verdade são ou do espaço que ocupam na tela.

Em Mistérios de Lisboa (idem, 2010), Ruiz aproveitou-se da nova tecnologia da alta definição (HD) e botou a câmera longe da ação, mostrando os personagens de corpo inteiro, fundido-os aos figurinos e cenários (eles mesmos personagens), realçando de tal forma o conjunto que termina por esmagar quem vê a cena com todo esse espledor de suas cores e formas (barroco clássico). Isso causa um diabólico estranhamento ao se ver o filme: como não há closes nem contraplanos, o espectador sente-se ele mesmo um personagem daquela história, como se tudo aquilo estivesse se passando ao seu lado (fisicamente inclusive); como se ele não conhecesse direito aquela gente, mas teria alguma intimidade, nunca o suficiente porém para lhes compreender totalmente a vida, sempre escapando algum ponto.

Mais: Ruiz orquestra inacreditavelmente belos planos-sequência (não há como deixar de citar o duelo, visto da perspectiva do padre de dentro da carruagem) de um rigor desarmante, com a câmera percorrendo os cenários em linhas sempre bem definidas, mas que surpreendem a cada segundo. Como Ruiz deixa muito espaço entre as personagens e o cenário, a câmara como que flutua, procurando inquieta um lugar naquela vastidão e, quando se fixa em algum ponto, não é que por alguns segundos, até começar novamente mais um vertiginosa incursão rumo aos cenários infinitos.

Há uma enorme diferença entre um diálogo em contracampo e outro em plano-sequência, e esse é um dos trunfos de Ruiz para sua estética estonteante em Mistérios de Lisboa, mas o diretor vai bem além disso. O fluxo narrativo ininterrupto, com tramas dentro das tramas, os inúmeros flash-blacks, as infindáveis indas e vindas da história, com as personagens em permanente deslocamento (e Ruiz filma tudo sem economia, mostrando malas, carroças, andanças, viagens, passeios, fontes, parques, bancos, panoramas, vistas etc etc), tudo isso junto causa uma espécie de vertigem; o espectador se sente tragado para dentro daquele universo sufocante no qual, com uma ironia elegante e distinta, Ruiz consegue ainda a proeza de se manter distante - é com um certo distanciamento que o filme evolui, por mais que toda a estrutura esteja a favor do irracional.

Originalmente feito para a tv portuguesa, em seis episódios de 52 minutos, o filme chegou intacto na sua versão para o cinema: ficaram de fora apenas alguns minutos do terceiro episódio, passados no convento onde a mãe do protagonista se retirou, e um episódio inteiro, o quarto, O drama do envenenamento de Anacleta dos Remédios e sua filha Amália, de forma que o essencial da obra foi poupado - Ruiz ficou triste, pois Anacleta era o personagem mais popular do romance, mas o diretor entendeu que seria bem difícil alguém topar ver um filme de 5h30min (sugestão: vejam os episódios no Youtube). No mais, a edição praticamente não interfere na condução da trama, um folhetim desbragado e muito popular, que Ruiz transformou em um roman-fleuve à la Honoré de Balzac - aqueles romances enormes, em geral contando a história de uma família desde os primeiros antepassados atravessando décadas ou mesmo séculos, sempre com um fundo histórico perturbador.

Raoul Ruiz (na escrita em francês, como ele assina em muitos de seus filmes feitos na França) fez questão de que o filme fosse em português, para ele uma língua impressionista, pois os falantes têm uma dramaticidade especial na entonação. Haveria, para ele, uma falta de objetividade nos diálogos que não é vergonhosa no português, pois falar de maneira errática faz parte dessa língua, explicou o diretor em longa entrevista à revista Cahiers du Cinéma. Assim as farpas de Castelo Branco ("A esperança de morte é o paraíso dos infelizes") ecoam retumbantes no sotaque do "purtugueiz de Purtugál" ("Espero há 15 anos cevar meu rancor no sangue do Marquês de Pombal"), uma verdadeira delícia estética, linguística e sonora para nós lusofônicos.

Mistérios de Lisboa perde um pouco da sua força na segunda parte, a francesa, em especial por não contar com os artíficios das quatro paredes da primeira metade, a portuguesa, ou talvez pela perspectiva europeia da trama: o catolicismo sufocante de Portugal é mais material para o barroco de Ruiz do que a Europa napoleônica. Em suma, é o filme do ano, incontornável e imprescindível.

Correspondente do Cineplayers no Canadá.

Comentários (8)

K.Lincoln Ramalho Paes | terça-feira, 11 de Outubro de 2011 - 13:11

Tinha certeza que a crítica era do Lazo, me surpreendi haha. Tá muito boa, mas...prolixo ou prolífico? Acho que o Demetrius se confundiu aí hein.

Marcus Almeida | quarta-feira, 12 de Outubro de 2011 - 14:43

Duração é o de menos, pelo menos pra mim.

Adriano Augusto dos Santos | sábado, 05 de Novembro de 2011 - 07:40

Um dos filmes mais interessantes que já vi.
Escreveu muito bem sobre ele.

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