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Críticas

Cineplayers

Novo fruto da era do revisionismo e da revisitação.

6,5
Da última década para cá, uma profusão de terrenos já conhecidos foram revirados em novas apostas de revitalização de público. Para lucrar mais em cima de carros-chefe já eternizados e que garantiam sua sobrevida nos lançamentos em mídia ou serviços de streaming, uma saída encontrada foi recauchutar, para as preferências estéticas e dramáticas dos novos tempos, com as clássicas animações adaptadas de contos de fadas e de obras de autores famosos transformadas em fantasias live-action (interpretada por atores e com cenários constrídos) e com um tom menos infantil e quase juvenil.

Nesse interim Tim Burton filmou Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 2010), Julia Roberts atuou Espelho, Espelho Meu (Mirror, Mirror, 2012), tivemos Malévola (2014), Branca de Neve e O Caçador (Snow White and The Huntsman, 2012), Kenneth Brannagh dirigindo Cinderela (idem, 2015), Oz: Mágico e Poderoso (Oz: Great and Powerful, 2013 )... E a lista de mitos recontados só cresce, como é o caso do vindouro Alice Através de Um Espelho (Alice Through The Looking Glass, 2016) e esse Mogli: O Menino Lobo, aposta da Disney no filão, dirigido por Jon Favreau. O ator e diretor fez história no cinema blockbuster ao dirigir os grandes hits Homem de Ferro e Homem de Ferro 2, muito provavelmente dois dos filmes que detonaram de vez a produção à toque de caixa dos filmes de super-herói.

Com cenários e animais computadorizados, produzidos pelo mesmo estúdio responsável por A Vida de Pi (Life of Pi, 2012)  e tendo como único ator em tela o ator mirim Neel Sethi, dando vida ao clássico personagem criado pelo britianico Rudyard Kipling na compilação de histórias O Livro da Selva em 1894.

A história do garoto criado por uma alcateia que tenta chegar até a cidade dos homens ajudado pela séria pantera negra Baguera e pelo simpático e bon vivant urso Balu a fugir de perigos como o tigre Share Khan e a serpente Kaa é atualizado para novos tempos e novas faixas etárias: há um esforço de Favreau em criar um mundo à parte, uma selva opulenta e exagerada, com jogos de luz e sombra criados o tempo todo, onde o ritmo de ação, travellings e montagem de ritmo estilizado distanciam do filme basicamente de fantasia e comédia de décadas atrás, com o contexto e a narrativa também sendo atualizados para abordagens mais complexas e menos maniqueistas. 

Agora, Share Khan desponta como um antagonista não apenas pessoal mas também político de Mogli, querendo convencer todos os animais durante a chamada “Trégua da Água”, uma seca no rio que atravessa a floresta que faz com que todos os animais entrem em um acordo de paz temporário onde lutas e caça são proibidas. O tigre, deformado após uma luta contra um humano, tem raiva de toda a espécie e deseja a morte de Mogli, antes disso transformando-o em um “perigo” para o equilíbrio da sociedade animal. 

Favreau é consistente na direção, mas também não inventa e nem ousa muito. Seu material, apesar de exuberante, não exatamente sobressai: é vítima de facilidades narrativas como a narração em off apenas pontual, sequências de duração considerável que acrescentam mais tempo do que efeitos dramáticos à trama - toda a sequência do Rei Lou, por exemplo). Apesar dos tempos mortos, ele é sábio para retomar seu filme das exigências contratuais e imprimir suas preferências de construção de atmosfera, já visível desde o início - com o filme começando com uma perseguição - ou na atmosfera suja e sombria na aparição da serpente Kaa, que aparece pouco mas, com voz de Scarlett Johansson, rouba a cena.

Curioso ver como tal queda de braço funciona. Mogli tenta vestir uma roupa que não é muito sua e que por muitas vezes é desconfortável. A abordagem mais heróica e realista e menos lúdica cria um filme que precisa ter os momentos de “graça e ternura” encaixados de maneira breve, não muito desenvolvida, enquanto o tom sério fundamentado no suspensa e na ação física, se intensifica cada vez mais, com Favreau enquadrando Mogli - que logo adquire um papel de protagonismo ativo por sua habilidade de criar ferramentas e soluções para problemas oferecidos - os animais e suas batalhas como fazia com o engenhoso Tony Stark em Homem de Ferro. Cada ângulo valoriza fluidez, admiração pelo estilo de composição (closes, planos em contraluz, manipulação digital do equilíbrio de cores e os efeitos construídos para as transições entre tempo presente e flashback) e o impacto sonoro e/ou visual. 

Se antes a luta do desenho era só por uma aceitação interior, agora ela ganha contornos com chavões ambientais, com Mogli sendo uma síntese tanto da figura que pode ser destrutiva quanto benéfica - como uma criança, como um indivíudo ainda desenvolvimento e ainda criativo, um verdadeiro mar de possibilidades. Mas não vai muito além, é verdade, de ser uma recauchutação mais agitada, com uma câmera mais trêmula e mais livre pelo espaço cênico, protagonizado por um ator pouco expressivo que parece mais ter sido escolhido pela semelhança, mas ainda é estritamente fiel não só a história de Kipling mas também à animação precedente: mesma paleta de cores, mesma direção de arte, mesmas músicas compostas para a animação de 1967. 

Dessa maneira, Favreau vai além de não negar a influência: sua obra é praticamente dependente da obra anterior, fazendo muito pouco além de “tirar do desenho e passar para a vida real sob as novas exigências de hoje”, tornando o último filme produzido sob a tutela de Walt Disney quase um pré-requisito para se julgar o filme desse ano. Existindo por causa da animação, tomando a animação como ponto de partida e régua, o filme choca a profusão de narrativas visuais criativas e excesso de música cantada afins de ilustração com o suspenso com algo de thriller, com seu horizonte de expectativas sendo de certa forma massificante: o vilão Share Khan é completamente ameaçador; Baghera é praticamente um policial; a alcateia está sempre tensa e a um passo de começar a confusão; o originalmente cômico Rei Lou é recriado como uma figura monstruosa e grotesca, criando mais subterfúgios de suspense. Apenas Balu segue uma chave cômica que garante a simpatia infantil pela figura bonachona, amante da comida, do bucolismo e do canto.

Mas a sensação de filme perdido entre infância e juventude, entre fascinação colorida e aceleração hormonal, permanece por longa parte atrapalhando muitas vezes o desenvolvimento dramático do filme, no meio do caminho entre leveza e peso. Para o bem e para o mal, este é o Mogli dos novos tempos: com aquela velha aura, mas com as necessárias aparências atuais vindo como um elemento estranho, que tenta se adaptar e, quando consegue, funciona como ação filmada motivada pelo  ambiente e contexto sempre original do conto inglês e quando não, soa derivativo de muito do que é praticado hoje em dia. Consciente, mas ainda não tão refinado. 

No final das contas, na disputa de adaptar o clássico em live-action entre o Mogli da Disney e Favreau e o Jungle Book de Andy Serkis e a Warner Bros., esse conseguiu sair antes, empurrando o outro para 2018, mas com um preço essencial: a identidade indistinguível da obra literária e da animação para que tanto deve. Fica a dúvida, que de tão apagado e pouco ousado, se este Mogli será lembrado no futuro. Prever é impossível, mas a julgar pelo sentimento geral de derivação, pode-se dizer que é pouco provável. O que não é, propriamente, caso raro: o que não falta são versões esquecíveis de verdadeiros gigantes da cultura popular.  Uma inevitável armadilha, um fardo sempre muito grande para carregar. Sair do zero, inventar concepções totalmente novas, ainda é muito radical. Mas esse tipo de produto (live-action, computação gráfica, ícones pop) vende cada vez mais; a tendência para a consolidação é o refinamento. E o Mogli 2016 já esboça um caminho a amadurecer e pavimentar.

Agradecimentos a Diego Costa e à Unicarioca

Comentários (5)

Matheus Bezerra de Lima | quarta-feira, 20 de Abril de 2016 - 18:14

Nunca vai se comparar ao clássico original, seguramente um dos melhores filmes da história da animação, cheio de charme e carisma e com uma simplicidade encantadora, que mostra que muitas vezes menos é mais.

Luiz F. Vila Nova | quinta-feira, 21 de Abril de 2016 - 09:45

Belo texto. Apenas uma correção quando diz: “Trégua da Água”, espécie de enchente do rio que garante um grande estoque de água...

Na verdade a "trégua da água" é justamente quando os animais enfrentam uma período de seca, com a pedra do rio ficando visível, e por isso é mantido um pacto entre os animais para que todos possam sobreviver, e não um período de abundância, como o texto sugere.

Pedro Henrique | quinta-feira, 21 de Abril de 2016 - 17:35

Não lembro de nada da animação, nada marcante na minha infância.

Dessa safra de revitalizações de clássicos infantis, considero que esse é o mais bem-sucedido até o momento

Bernardo D.I. Brum | sábado, 23 de Abril de 2016 - 13:28

É verdade, Luiz Fernando, vacilo meu. Vou corrigir, obrigado!

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