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Críticas

Cineplayers

Narrativas particulares.

8,0

Sang-soo moldou ao longo dos anos estilo e universo únicos, estruturados e sólidos. Facilmente identificável por certas características como os experimentos com a narrativa, o estilo calculadamente minimalista e o universo temático a ver com diretores de cinema, roteiristas e escritores às voltas com relacionamentos, bebedeiras e deslocamentos.

O personagem ponto de vista é Mori, um japonês que teve um relacionamento com a coreana Kwan anos antes e agora volta à Coréia do Sul para procurar a mesma. Conhecemos seu dia-a-dia de maneira fragmentada, através de seus relatos escritos e endereçados à Kwan. A falta de cronologia é provocada pelo próprio desenrolar dos fatos do filme, quando ela, ao tropeçar numa escada, embaralha vários papéis e esquece de recolher um quando sai do lugar. Entre bebedeiras com amigos da estalagem onde fica e um envolvimento afetivo e sexual com a dona do bar Montanha da Liberdade, Mori mais vaga do que procura, sem nunca responder a quem pergunta o que o levou até a Coréia.

A aparente simplicidade pode não saltar aos olhos, podendo levar a crer que Sang-soo pratica um cinema sem grandes pretensões e quase inofensivo. Mas acompanhar seu trabalho filme a filme revela um cinema bem mais ambicioso e radical que não cansa de procurar novos caminhos de seu projeto estético. Sang-soo é o diretor que promove repetições estilísticas, inverte perspectivas, despreza a linearidade e bagunça a rotina; enquanto outros filmes contam filmes de maneira fora de ordem de maneira muito mais explosiva, valendo-se da expectativa que os flashforwards e in media res consigam surpresas e catarses dramáticas, Montanha da Liberdade (Jayuui Eondeok, 2014) é um filme de momentos de um personagem que apenas vaga com um objetivo aparentemente ordinário - sintomático do cinema moderno, que insiste  em trazer à tona os personagens perdidos, deslocados, nesse caso tanto no tempo quanto no espaço.

O drama e comédia quase que inteiramente à base de diálogos, a recusa pela mão pesada na criação de afetos de humor e tragédia, a dissolução da decupagem em planos estáticos modificados por zooms são marcas registradas velhas conhecidas de quem acompanha o trabalho do diretor.

Mori encarna esse cinema de narrativas particulares - sempre em posição de apatia, estranho à cultura local, sempre causando estranhamentos com seu olhar sincero e direto sobre os fatos. O filme nos obriga a olhar até o seu final o ponto de vista de um personagem que nada faz além de esperar pelo próximo grande acontecimento, com suas questões particulares se tornando leit motivs humorísticos em meio às cenas de conversa e bebedeira que tomam o filme.

Essa arquitetura do cotidiano estranho, da angústia de não conseguir seguir uma linha exata de dias, de estar preso em meio a locações  que ainda que pareçam as mesmas e tediosas estão sempre escondendo em si novos universos a serem narrados tem uma ascendência que pode ser traçada diretamente a nomes como Eric Rohmer, com seus filmes utilizando som e diálogo falado como potencializador das pequenas e efêmeras , imagens, e Yasujiro Ozu, na exploração de decupagens pouco tradicionais e na construção anti-dramática da narrativa.

O que convenciona a nomear-se de projeto estético não cansa de oferecer surpresas, quando Sang-soo encena o mesmo final duas vezes em espaço de minutos, se utilizando dos mesmos princípios de enquadramento, da mesma ação dos atores, do mesmo elemento de surpresa rarefeita e já esperada - no sentido que o personagem preso em si e em suas vontades não é julgado por suas ações seus afetos com diferentes personagens, nem tem que passar por testes de fogo em uma suposta provação de valor, já que o cinema contemporâneo é amoral e se interessa pelo levantamento de questões antes da oposição de forças e a decupagem contemporânea se interessa mais pelo poder expressivo dos artíficios do cinema do que velhas cartilhas de provocação de afeto; e é assim que Sang-soo ergue um modelo de estética e encenação singular nos dias de hoje, com questões estéticas e dramáticas sempre pertinentes e atuais.

Comentários (1)

Declieux Crispim | terça-feira, 13 de Outubro de 2015 - 10:56

O único do mestre Sang-soo Hong que não vi. Espero que lancem logo em torrent, pois no cinema em minha cidade nunca chegará, infelizmente. Bela crítica.

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