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Mosca, A

(Fly, The, 1986)
7,6
Média
462 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Cronenberg mistura cinema "B" com romance em uma bela ficção-científica.

8,0

David Cronenberg é um dos cineastas mais subestimados do cinema. Preterido pela crítica e um completo desconhecido para o público casual, o canadense tem sua pequena parcela de admiradores situados em alguns círculos distintos de cinéfilos - principalmente naqueles compostos por adoradores do gênero “gore”, enraizado no culto pelo “trash”, pela explicitação escrachada e degenerada das cenas de violência (vide A Morte do Demônio). Muito desse desapreço deve-se, principalmente, ao fato de Cronenberg realmente construir obras de difícil acesso e compreensão, fitas obscuras e de temáticas toscas que, na superfície, nada mais parecem do que uma daquelas produções vagabundas e tendenciosas que compõem a linha do cinema “B” norte-americano. 

Entretanto, é exatamente pelo fato de este estilo grotescamente particular do diretor atrapalhar sua relação com a crítica e, em menor escala, com o público, que ficamos com clara certeza do que realmente ocorre no que concerne à aceitação de suas obras dentro do mundo cinematográfico. Afinal, postas as cartas na mesa, o que podemos concluir é que Cronenberg não passa mesmo é de um tremendo incompreendido, talvez o maior do cinema contemporâneo (atualmente, ao menos possui certo reconhecimento em virtude de seu mais recente e bem sucedido trabalho, o ótimo Marcas da Violência). Digo isto, pois, por detrás de toda esta ambientação verdadeira e estilizadamente “trash” das atmosferas e/ou imagens de seus filmes, o que podemos encontrar é um trabalho exímio e complexo de um realizador que sabe como poucos abordar contextos da psicologia humana em suas construções narrativas, bem como na caracterização das personagens.   

Um grandioso exemplo deste estilo de cinema “cronenbergiano” é o filme em voga neste singelo artigo, a ficção-científica A Mosca. A obra, que, particularmente falando, acredito ser o mais completo trabalho da ótima filmografia do diretor, trata da história de um cientista, interpretado por Jeff Goldblum, que acredita ter realizado sua melhor e mais revolucionária experiência – a construção de uma máquina de teletransporte. Diante da empolgação do momento, acaba relatando o fato a uma jornalista (a fantástica Geena Davis, ainda em sua época de glórias), que, em busca de uma matéria, passa a conhecer melhor o experimento e, principalmente, o homem por trás deste experimento. Com a idéia de escrever um livro sobre o caso, inicia um período de convivência com o indivíduo, que acaba, posteriormente, se transformando em um bonito romance. 

Porém, a máquina de teletransporte ainda possui um único defeito: da forma como fora idealizada, só é possível transportar objetos inanimados, sem vida, sem carne, já que a composição molecular de um ser vivo não é totalmente compreendida por ela – na tentativa de teletransportar um babuíno, por exemplo, o cientista acaba acidentalmente virando-o do avesso. Após descobrir um meio de consertar este pequeno defeito, e empolgado por finalmente ter completado sua criação, o cientista resolve dar a si uma demonstração de que realmente é possível teletransportar um ser humano, testando-a consigo mesmo. E é aí que as coisas se complicam: juntamente com ele, uma mosca adentra a cabine e, quando suas moléculas foram transpostas para a outra extremidade da máquina, o computador fizera nada mais nada menos do que uma fusão entre os dois códigos genéticos, iniciando uma dolorosa e repugnante mutação em seu corpo.

A trama tem cheiro, forma e gosto de um verdadeiro banquete de cinema “trash”, isto é fato. Mas, o que muitas vezes passa despercebido pelo espectador, é o brilhantismo de toda a composição narrativa e da densidade e profundidade psicológica que podem ser encontradas nesta e em grande parte das obras do diretor. O que mais impressiona em A Mosca é a inteligência com que Cronenberg trabalha a construção não apenas dos acontecimentos, mas da conotação humanista das personagens envolvidas nessa trama aparentemente inverossímil e inegavelmente fora da realidade – o que nos permite enxergar a mutação da personagem de Goldblum de forma metafórica, a exemplo da transformação do caixeiro viajante em barata no clássico literário A Metamorfose, de Franz Kafka (somada à intervenção do homem no andamento do mundo moderno, algo que ainda não possuía exacerbância na época em que vivera o escritor checo). 

Com isso, mais do que um ótimo filme de suspense, cheio de efeitos especiais de grande categoria – ressaltando, grande categoria para os amantes de grotesquidades, já que o filme é assumidamente e propositalmente “trash” em seu visual – e muita tensão, o que Cronenberg cria é uma parábola melancólica e até mesmo emocionante sobre a degeneração física e psicológica de um ser que, dotado da ilusória visão de que poderia estar prestes a iniciar uma grande ascensão em sua vida, se emaranha cada vez mais em uma complicada e irreversível decomposição, perdendo tudo aquilo que possuía e, principalmente, tendo que sobreviver com o peso da culpa que sente por estar se distanciando de seu grande amor. Sim, porque, no fundo deste enredo bizarro, A Mosca nada mais é do que uma simples história de amor, de perda de identidade, que trata de um homem que acabara na ruína em virtude de suas escolhas, mas que, mesmo diante de tão admirável situação, nunca deixara de sentir, de ser humano.

A forma como Cronenberg conduz o andamento do filme é excepcional. Antes de atirar o espectador em uma ambientalização grotesca e condizente como a banal generalização da obra, o diretor vai armando e apresentando as diversas nuances psicológicas de cada personagem, desenvolvendo com inteligência todo o lado humano da situação – e, com isso, cria realmente um laço fortíssimo entre as personagens de Goldblum e Davis, que é fundamental para o desfecho da história. Talvez ainda mais importante do que isso, é o fato de que este lado humano consegue ser mantido quase que integralmente, mesmo após o início do acontecimento principal, ou seja, a transformação do cientista em monstro, que, afinal, é o mote do filme. A contextualização, a forma com que os acontecimentos são narrados, jamais permite ao espectador (atento) enxergar um monstro, por mais repugnante que seja sua caracterização (e é mesmo). Afinal, por debaixo de toda aquela [de]composição medonha, ainda reside uma alma, alguém que sente dores, que possui anseios, medos e dúvidas, tanto quanto nós. 

Falando em decomposição medonha, é impossível de se tecer qualquer comentário sobre A Mosca sem citar o excelentíssimo trabalho técnico da obra, tanto no tocante à construção cenográfica quanto no que se refere à maquiagem (laureada com o Oscar) e aos efeitos visuais do filme. A explicitação das cenas de horror, com direito a membros sendo corroídos por substâncias ácidas regurgitadas pela “mosca”, unhas sendo arrancadas com facilidade semelhante à descolagem de um adesivo e larvas sendo paridas de humanos é maravilhosa, funcional e extremamente atraente aos olhos de um bom apreciador da ousadia visual no cinema – além disso, o mais importante é que nada é gratuito, já que essa composição contribui efusivamente para a construção da realidade ficcional da obra. Ademais, a criação do ambiente em que boa parte das seqüências se passa, o apartamento do cientista, é ótima, acompanhando a gradativa mutação do indivíduo e se tornando aos poucos um lugar cada vez mais arruinado.

Este curioso paradoxo entre o desenvolvimento humanitário da narrativa e a composição cênica degenerativa, dotada de uma plasticidade altamente “trash”, além de bastante inusitada, resulta também em um terceiro ato que consegue equiparar os níveis de tensão, emoção e criatividade de forma raramente vista no cinema. Tudo isso é reflexo de uma sobriedade magnífica, que aponta com precisão para o fato de Cronenberg ser um dos diretores mais ousados, autorais e inteligentes atualmente em atividade. Além de possuir no currículo filmes excepcionais como Spider - Desafie Sua Mente e Crash - Estranhos Prazeres, o canadense apresenta também uma capacidade indescritível de obscurecer temas inteligentes e complexos em tramas aparentemente banais, realizando verdadeiros estudos da psique humana. E, vale dizer: se algum dia outro realizador conseguir a façanha de fazer com que eu me comova com o drama de um “monstro” asqueroso, em plena putrefação, que regurgita substâncias nojentas e perde partes do corpo de forma semelhante a um leproso, faço questão de ir até sua residência, onde quer que seja, e beijar-lhe os pés. Podem me cobrar!

Comentários (5)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 30 de Novembro de 2013 - 14:01

Assistia direto no Corujão. Muito bom!!! Senhores do Crime (2007) e Marcas da Violência (2005) são outros grandes filmes do diretor.

Roberta Cristina Machado | terça-feira, 22 de Abril de 2014 - 23:12

Excelente crítica! O monólogo de Set na cafeteria, para mim, resume o filme.

Caio Henrique | segunda-feira, 19 de Janeiro de 2015 - 17:28

Cronenberg conseguiu o impossível: tirar uma atuação decente do Goldblum. Já venceu na vida

Lucas Souza | segunda-feira, 19 de Janeiro de 2015 - 21:48

"Cronenberg conseguiu o impossível: tirar uma atuação decente do Goldblum. Já venceu na vida"


O cara pelo menos tem carisma, rsrsrsrs.... Filme Excelente, acho até que cabe um 9,0!

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