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Mulher Alta, Uma

(Dylda, 2019)
7,4
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Às presenças após a Guerra

10,0

O livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Aleksiévitch, reúne e organiza depoimentos de combatentes e partisans mulheres na União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. No livro, a dor (de se estar presente, como mulheres, nos espaços masculinos e misóginos da Guerra, do conflito direto contra os alemães e de voltar para casa, transformadas pela experiência) é atravessada quase sempre por uma ideia de sacrifício e heroísmo relutante. Se a Guerra não tem sentido, o depoimento delas compreende uma necessidade de se dedicar a essa falta de sentido – uma dedicação que Aleksiévitch trata com muito respeito no seu processo de escuta e escrita.

Livremente inspirado pelo livro de Aleksiévitch, Uma Mulher Alta (Dylda, 2019) confronta essa equação do sacrifício na Guerra. Iya (Viktoria Miroshnichenko) é uma ex-combatente que trabalha num hospital militar em Leningrado em 1945. Ela cuida do pequeno Pachka (Timofey Glazkov) e não sabe se ainda pode esperar o retorno de Masha (Vasilisa Perelygina), sua companheira de combate. No sacrifício dessas mulheres, no entanto, não há honra ou heroísmo, apenas as permanentes cicatrizes e perdas deixadas por uma experiência inominável.

O jovem Kantemir Balagov, diretor do filme, já demonstrava em seu primeiro longa-metragem, Tesnota (idem, 2017), um talento para a composição dos personagens e seus conflitos em cena. Ambas as obras são focadas em figuras femininas enfrentando uma conjuntura de extrema dificuldade. Mas, enquanto o filme anterior poderia ser acusado de se utilizar do sofrimento da personagem para a composição do drama, não acredito que uma leitura desse tipo caiba a Uma Mulher Alta.

Balagov constrói uma trama em que as duas personagens são agentes de suas próprias vidas e da comunidade que se estabelece após a Guerra, no lugar de meros produtos de uma circunstância. São as escolhas que elas fazem que tecem o filme. Em certo sentido, o respeito dado à autonomia dessas mulheres para construir o seu próprio futuro após o fim da esperança se assemelha ao respeito com que Aleksiévitch trata as combatentes no processo de escuta.

As vozes dos relatos de Aleksiévitch se diferenciam de Iya e Masha, no entanto, numa questão crucial: as primeiras narram a si mesmas ao se inserirem numa jornada que é também a jornada do país e que tem um arco narrativo perfeitamente estabelecido, com início, meio e fim; e as outras duas estão deslocadas, elas não conseguem fazer sentido da sua própria narrativa enquanto a trama se desenvolve a partir de suas escolhas. Por um lado, elas não estão prestes a encerrar a própria história (e isso faz parte da autonomia narrativa que é reivindicada por elas); por outro lado, está escuro, e as grossas paredes dos interiores por onde circulam no frio impedem que elas visualizem algo que se assemelhe a um quadro completo da história do país ou da sua própria.

As personagens de Uma Mulher Alta estão tomadas, afinal, pelas presenças do momento – pelo contato dos corpos, pela arquitetura claustrofóbica e pelas rachaduras na parede. Balagov formula uma estética a partir dessa impossibilidade de uma alternativa pelo passado (que foi destruído pela Guerra) ou pelo futuro (que é incerto). Por isso, as texturas – das paredes mal pintadas com cores frescas, dos tecidos incômodos sobre a pele, da umidade nos interiores – são tão presentes.

Isso é exemplificado, já no início do filme, na potência afetiva que descobrimos, numa determinada cena, no toque de pequenos dedos que se agarram a um suéter velho, em súplica. Não é nunca fácil se abrir para o tipo de sensibilidade que Uma Mulher Alta tem a oferecer – uma sensibilidade que o filme formaliza. A referência mais próxima para esse mundo que aparece na forma do movimento é também do cinema russo. O Espelho (Zerkalo, 1975), de Andrei Tarkovsky, tem uma capacidade equivalente, também espantosa, de fazer presente e sensível sua forma visual e, assim, fazer presente e sensível a dor de seus personagens. Balagov é jovem, mas o que descobrimos em seu filme é uma das mais antigas potências da imagem e do movimento.

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