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Mulher da Areia, A

(Suna no onna, 1964)
8,8
Média
193 votos
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Críticas

Cineplayers

Clássico da Nouvelle Vague japonesa, A Mulher da Areia é uma experiência torturosa e exasperante.

8,5

Na maioria das vezes, o sexo é representado no cinema na forma mais singela: o ato físico do amor. De vez em quando, porém, vemos também duas criaturas trepando por poder, ambição e competição, em geral nos filmes policiais. Sexo por piedade tem muito no cinema independente. Por tédio é mais frequente no cinema europeu, e por aí vai. Esses desvãos da natureza não são agradáveis de se ver – salvo se for uma comédia de gosto duvidoso. Quando descamba a futricar essa parte desagradável, digamos assim, da psiquê humana, os filmes podem ser duros e difíceis.

Quem quiser ver uma das mais tortuosas experiências do cinema nesse sentido, a indicação é A Mulher de Areia (Suna No Onna, 1964), clássico da Nuberu Bagu, a nouvelle vague japonesa, de um dos seus mais enfezados diretores, Hiroshi Teshigahara. Trata-se de uma batalha sexual exasperante e desesperada, sem vencedor, só ruína, que venceu o Grande Prêmio do Júri, em Cannes, e, pasmem, é sério, deu a Teshigahara uma indicação ao Oscar de melhor diretor (perdeu para o dulcíssimo Robert Wise de A Noviça Rebelde [The Sound of Music, 1965]), e de melhor filme estrangeiro (perdeu para outra xaropada, o italiano Ontem, Hoje e Amanhã [Leri, Oggi, Domani, 1963]).

Lá o espectador será lembrado de que homens e mulheres também fazem sexo por repulsa. Pior, por demência. Ansiedade também é motivo, tudo é motivo, aliás. Por desespero a galera arranca as roupas e fode. É quando o “amor” transforma-se num jogo destrutivo e impiedoso, talvez próximo do masoquismo.

A história é simples. Um entomologista de Tóquio vai a um deserto estudar pragas e, ao perder o ônibus de volta, é convencido a se hospedar na casa de uma jovem viúva, que mora a bem dizer num buraco enfiado na areia. Nas próximas duas horas, veremos nos mínimos detalhes o relacionamento dessas duas criaturas reduzidas a vermes, sonorizada com uma trilha de arrepiar do músico Toru Takemitsu, seguindo o roteiro de Kobo Abe, romancista japonês que adaptou sua própria obra, transformada em funesto delírio expressionista pelo diretor, ex-professor de cinema que teve uma tardia e curta (17 filmes), porém impactante, carreira cinematográfica.

Juntos, Teshigahara, Takemitsu e Abe farão 4 filmes, todos existenciais, filosóficos, questionando a identidade japonesa e a alienação da sociedade urbana. A colaboração entre os três depassava as atribuições dos filmes, um provocando artisticamente o outro. Desde a estreia do livro, diretor, autor e músico começaram a desenvolver uma estética única para a obra. Desenharam maquetes, fizeram uma intensa pesquisa de sons, participaram juntos da escolha do elenco (no caso, o galã Eiji Okada, de Hiroshima Meu Amor [Hiroshima, Mon Amour, 1959]), tudo muito refinado e exigente, bem ao estilo do trio.

Optaram pela linguagem não-verbal, o claro-escuro barroco (chiaroscuro), a languidez, o torpor e a opressão de formas e superfícies para fazer desenrolar a história, tudo com o mínimo de recursos e inteiramente cadenciada pela música, praticamente uma voz dentro da narrativa, característica de Takemitsu.

Takemitsu e Abe nasceram fora do Japão e, uma vez na escola, entediaram-se e pularam fora. Essa visão externa alimenta o filme, apesar de Teshigahara, filho de família rica, tradicional, ser um “japonês puro”. Os valores japoneses, que levaram o país à guerra e à derrota, mais a humilhante dominação estrangeira, eram repudiados pelos dois "extrangeiros", influenciados pela cultura trazida pelos americanos. Daí esse ataque frontal, político até – um ambiente que se parece a Kafka, Sartre ou Camus. É esse sentimento que anima a cena do estupro, com os habitantes da aldeia obrigando o ‘marido’ a violentar a ‘mulher’ na frente de todos.

O filme é dual: a relação entre os dois na casa e a relação dos dois com os habitantes da aldeia, que os confinam no buraco-casa para ter um homem a mais na contagem para a ração alimentar destinada à vila. A areia é ela também um personagem: um monstro sem rosto, a natureza, um desafio intransponível, a opressão etc.

O debate sobre a opressão social (do trabalho, da família etc) era uma das grandes questões da sociedade japonesa naquele momento, os anos 60. É talvez o tema do filme. Mas a dilacerante relação entre homem e mulher também ressalta. Ele vai se tornando cada mais ofensivo, irritadiço e até mesmo mesquinho por conta do controle externo. Ela só pensa em retê-lo na casa, não se importando nem com a perda da liberdade, nem com os comandos externos – para ela, a solidão seria pior. Para ele, a perda da liberdade individual é a verdadeira escravidão. Duas visões de mundo até hoje válidas.

No filme, a mulher executa as suas tarefas sem reclamar e espera que Niki aceite também o seu destino. É o taoísmo, o sistema de pensamento religioso baseado no agir pelo não-agir, na realização das coisas através da mínima ação, na moderação do desejo e na aceitação da vida tal qual ela é, em vez de forçá-la a ser o que não é. Isso seria “ser japonês”. A Mulher de Areia é uma rica discussão feita pelos autores, gente sagaz e bem informada, sobre essa filosofia, em especial no enigmático final.

Filme pertencente à categoria dos essenciais.

Comentários (1)

Luiz Phillipe Lameirão Côrtes | terça-feira, 02 de Setembro de 2014 - 21:19

Top five de toda a história do cinema. Nenhuma palavra é capaz o suficiente de descrever essa obra.

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