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Críticas

Cineplayers

A desmaterialização dos ideais americanos, por Frank Capra.

10,0

Antes de fazer história com o clássico natalino A Felicidade Não Se Compra, a dupla Frank Capra e James Stewart já havia alcançado êxito semelhante com A Mulher Faz o Homem, um dos feel good movies de Capra que abraçam as convencionalidades e as transcendem para falar de algo muito maior, neste caso, sobre o universo complexo e conturbado da política e seus jogos de interesses. Mesmo atualmente, a obra permanece com a força de sua mensagem intacta, mas se levarmos em consideração a época no qual foi lançado, aí teremos uma noção mais exata do quão Capra foi ousado e corajoso.

Com roteiro escrito por Sidney Buchman e baseado numa história concebida por Lewis R. Foster, A Mulher Faz o Homem já começa através de uma frenética sucessão de acontecimentos: através de vários telefonemas, vários políticos comentam e debatem sobre a recente morte de um senador dos Estados Unidos, sem o qual estes não poderiam levar para a frente um projeto corrupto. Na busca de alguém que ocupe a cadeira do falecido senador, os políticos chegam até Jefferson Smith (James Stewart), um ingênuo homem do interior que, levado por seu patriotismo, aceitar ocupar o cargo vago. Entretanto, aos poucos, Jefferson irá se ver diante de uma realidade que irá quebrar e mudar sua visão otimista sobre a confiabilidade das constituições de seu país e daqueles que o comandam.

Capra, cujos filmes sempre foram carregados de uma forte valorização aos ideais americanos, cria aqui um filme que desconstrói e coloca em xeque tais valores constitucionais. Para chegar a tal ponto, o roteiro recorre ao clichê do sujeito inocente e sonhador que entra em choque ao se deparar com uma realidade diferente da qual imaginava. Basta prestar atenção na cena em que Jefferson (a referência ao presidente Thomas Jefferson não é mera coincidência) faz um tour pela cidade e Capra, com o auxílio de uma trilha sonora que exala patriotismo, apresenta em sequência estatuas de ex-presidentes dos EUA até chegar ao Memorial de Lincoln, onde Jefferson se entrega à emoção. Tal ufanismo brilhantemente ressaltado em tal sequência será, aos poucos, transformado por Capra na sombria realidade do que é, de fato, a política interna.

Trabalhando em cima de fascinantes truques de câmera (como a imponente Câmara do Senado que nos é revelada pela perspectiva do protagonista) e um jogo inteligente de luzes e sombras (repare na escuridão do momento em que Jefferson parece decidido a desistir de tudo), Capra não se limita a definir corretamente os mocinhos e vilões, mas se dá ao trabalho de humanizar até mesmo aqueles que são responsáveis pelo trabalho corrupto. É o caso de Joseph Paine (Claude Rains), um homem que visivelmente acredita na constituição das leis americanas, mas que, seduzido pelas oportunidades oferecias pelo jogo sujo dos interesses políticos, se deixa levar pelas concessões, ao ponto de acusar Smith como o responsável pelo projeto corrupto elaborado. Rains, indicado ao Oscar por este papel, representa muitíssimo bem os conflitos enfrentados por seu personagem ao longo de toda a falsa acusação em cima de Smith, e o roteiro trabalha de tal forma com este sentimento de culpa que a atitude abrupta e inesperada de Paine consegue, com louvor, soar coerente e permanecer dentro do contexto mais humano da obra.

James Stewart, um dos grandes nomes da Era de Ouro de Hollywood, realizou aqui um de seus trabalhos mais notáveis. Sua composição de Jefferson Smith é completa e rica nos mínimos detalhes, com Stewart apostando em trejeitos que refletem com perfeição o espírito do sujeito encantado com as aparências construídas por seu país, e que mais pra frente, irá se ver desiludido com a reversão desse pensamento. De fala pausada e olhar deslumbrado, Stewart faz um trabalho genial durante a gradativa mudança do personagem, que aos poucos vai se revelando um homem destemido e confiante naquilo que acredita, culminando no espetacular clímax onde o ator se entrega em um tour de force arrebatador. Eu seu contraponto, temos a maravilhosa Jean Arthur como a determinada Clarissa Saunders, uma mulher entediada diante do desgastante jogo de interesses na política, mas que após enxergar a confiabilidade Smith em seus ideais, recupera seus próprios valores e reencontra uma razão para lutar contra o sistema corrupto. O momento em que Saunders explica para Smith o longo e difícil processo para a aprovação de um projeto é bastante significativo e certamente um dos mais belos do longa. E vale ressaltar que é justamente no apoio que Saunders representa para Smith que o filme encontrou inspiração para seu curioso título brasileiro.

Inesperadamente complexo, vibrante e provocador, todo o debate proposto por Capra aqui ainda encontra ecos não apenas na constituição americana, mas também nos idealismos patriotas do mundo todo. E ainda assim, o filme aponta também para a velha esperança no fim do túnel, representada no espetáculo de americanismo de Jefferson Smith.

Comentários (4)

Lucas Felipe | quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015 - 01:54

Os 20 minutos finais são espetaculares, de arrepiar! Stewart era gênio!
Ótima crítica para esse filmaço!

Paula Lucatelli | quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015 - 02:33

Bela crítica, Rafael!
😁😁😁

Conde Fouá Anderaos | quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015 - 09:06

Fazia tempo que esse filme merecia uma crítica da equipe do CP. Bem escrita, bem articulada e sucinta. Parabéns Rafael.

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 21 de Fevereiro de 2015 - 19:37

Já havia passado da hora deste clássico receber uma bela crític a como esta. Meus parabéns!

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