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Críticas

Cineplayers

Filme de guerra e de amor.

9,0

Bem no começo de Mulheres no Front (Le soldatesse, 1965) os letreiros nos localizam no contexto do conflito bélico em questão, mas passados alguns minutos pouco nos interessa qual guerra histórica presenciamos: o prólogo e a meia hora final são das imagens mais duras e colaterais já filmadas por Valério Zurlini, principalmente por conceber seu filme não como uma aula de História, e seus personagens não como soldados e prostitutas, mas como homens e mulheres. A guerra travada em Mulheres no Front é a de todos os homens e mulheres na história da humanidade, não apenas da invasão e posterior ocupação italiana na Grécia durante a Segunda Guerra Mundial.

Uma frota de mulheres é transportada com a escolta de oficiais do exército italiano numa viagem de caminhão (e depois de trem) pelo terreno de montanhas traiçoeiras de Atenas (uma cidade de mortos, cemitério clandestino de espetáculos repugnantes aos quais ninguém pode dar um fim), na Grécia, até ao norte, a fim de servir os soldados nos bordéis e prostíbulos em torno das bases militares na região. Uma sinopse dessas em maus mãos poderia redundar em dramas pesados pela lente de outros cineastas dispostos a maltratar suas personagens femininas, e as transformarem em vítimas do inferno na Terra. Não que Mulheres no Front amenize o drama ou doure a pílula, mas a diferença aqui é de tom, de postura, de imersão na experiência de um universo concreto de seres e olhares. Como grande tradutor de sentimentos e almas humanas que Zurlini sempre foi, ele não necessita sublinhar as vicissitudes de suas mulheres ou humilhá-las, suas personagens residem num "estar no mundo", que não corresponde a conceitos e artifícios, nem geram teses ou discussões complacentes, simplesmente os seus personagens respiram como homens e mulheres, e não bonecos e fantoches, mesmo em meio a fúria e violência natural do mundo. Enquanto que muitos cineastas contemporâneos se acomodam em filmes covardes, que giram em falso e auto-centrados numa redoma que só responde a conceitos em torno de uma vontade de impor um sentido pessimista e automático de mundo, assistir os de Valério Zurlini corresponde a uma revelação, a descoberta de um mundo que, por si só, é destituido de sentido. A diferença é sútil e ao mesmo tempo gritante.

Valério Zurlini é incapaz de chantagear seus espectadores com cores fortes, movimentos bruscos ou burilados com uma plasticidade vazia. Em seu cinema estamos diante apenas de forças emotivas muito fortes, de sentimentos extremos, mas mantidos em grande parte do tempo num estado de sereno desespero que se acumula rumo ao sacríficio e destruição. Zurlini mais de uma vez se aproximou da guerra em seus filmes (de Verão Violento [Estate Violenta, 1959] a O Deserto dos Tártaros [Il deserto dei tartari, 1976]), sempre pelas bordas, e como geralmente ocorre nos melhores filmes do gênero, Mulheres no Front trata de uma jornada em direção a um destino incerto. A viagem pelas montanhas é marcada pela incerteza e perigo, não se sabe ao certo se chegarão onde devem ou o que será encontrado no meio do calvário que é a travessia pelas duras paisagens gregas em meio a fome, privações e epidemias.

Enquanto isso, vamos conhecendo o protagonista masculino (o tenente interpretado por Tomas Milian), que precisa se acertar com sua consciência dividida (ele no começo não enxerga sentido em sua missão e não é adepto dos ideais fascistas, além de mais tarde fazer uma declaração falsa aos superiores para registrar uma das moças), e as doze mulheres lideradas pelas personagens de Anna Karina e Lea Massari, o que faz pensar no filme como uma versão contemporânea de No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939) com um final menos triunfante. Mulheres no Front guarda em sua estrutura semelhanças com outros filmes de guerra e faroeste (gêneros que por vezes se aproximam, mudando apenas o contexto e a época que determinam a sua classificação), mesmo que de cineastas de estilos e orientações diferentes aos de Zurlini, com um grupo em itinerário por um caminho que aflige a todos sob a ameaça de um inimigo quase invisível , os soldados gregos cujo perigo de surgirem do meio das montanhas assombra os italianos e as garotas.

Mas o elemento humano reside sempre em primeiro lugar nos trabalhos de Valério Zurlini. Poucos filmes (podemos pensar em Rua da Vergonha [Akasen chitai, 1956], de Mizoguchi, como outra honrosa exceção) apresentam a prostituição com a dignidade de Mulheres no Front, ainda que sempre muito triste e num universo confinado de um deserto montanhoso prestes a qualquer hora virar um campo de batalha. Sequências como a do diálogo entre o tenente fumando o seu cigarro e Elenitza (Anna Karina) desejando se oferecer sob a noite escura e longe das outras garotas é daquele rol de cenas antológicas e sublimes que o cinema de Zurlini teima em colecionar. Em outro momento, a situação se repete, mas invertida: Anna Karina é que está fumando, e disposta a reiterar seu interesse pelo tenente dilacerado, mas à esta altura compreendendo que uma união entre eles já não é mais possível. Ou então quando Eftikia (Marie Laforêt), a mais indignada das mulheres, compartilha com o tenente um de seus sonhos.

O medo que literalmente cega o condutor do veículo que transporta a todos (o sargento interpretado por Mario Adorf), as emboscadas, os tiroteios, o massacre. A obra de Zurlini raramente se aproximou de um cinema tão direto, físico mesmo, permanecendo porém tão intimista como de costume. Ganhar ou perder já não tem mais a ver com glórias e triunfos; ao final, cada personagem se encontra exausto, e a posição entre os oficiais, abalada (há um major que acompanha o grupo). Os acordes da linda trilha musical pontuam o melodrama, como no choro de Eftikia defronte dos cadáveres estendidos aos pés do padre que lhes dera a extrema-unção. Ou o tenente e Eftikia juntos e irremediavelmente perdidos e distantes um do outro dali por diante, sem a coragem de se encararem nos olhos. Na guerra todos são perdedores.

Comentários (3)

Lucas Castro | sexta-feira, 04 de Novembro de 2011 - 20:35

Que lindo, uma crítica pra um Zurlini aqui 😋
Esse é um dos melhores.

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