Saltar para o conteúdo

Nosferatu

(Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922)
7,8
Média
315 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Uma praga assassina viciada no sangue

10,0

A desgraça. Obra seminal do terror adaptando, de forma não autorizada, a história do Conde Drácula. A mais clássica vampiresca, e uma das mais pungentes do horror. No alto do 1922, dentro da seara expressionista alemã no cinema mudo, cria-se uma obra arrebatadora no seu visual, com um fenomenal personagem-título que assombraria gerações nas mais diversas adaptações, tendo poucas conseguido o tamanho dessa personificação dada ao putrefato ser como nesse filme dirigido por F. W. Murnau. Revolucionário. Um filme sobre certa praga. Um preto-e-branco sobre uma peste negra, ruim até o talo, mas que ao fim demonstra camadas inesperadas, até mesmo humanas (nem que seja tesão).

Abordagem frontal no horror pestilento. O pútrido corporificado. Tenebroso e trágico. Temos na figura do Nosferatu, uma monstruosidade escrota, mas com um arcabouço de sentimento surpreendente atrelado a ele? Figura absolutamente aterrorizante, e alquebrada ao fim pelo amor? Ora, se isso é raro nos filmes do gênero, e dos mais diversos subgêneros até no século XXI, avalie aí o impacto disso no início do século XX. O filme trata mais da questão dele ser uma praga do que alguém em busca de um romace anterior. Mas expressa a atenção dele dele pela mulher rapidamente, mas como uma vítima do que um amor perdido. Este amor talvez seja a funcionalidade para a causa de sua morte.

Calamidade. A obra explicita isso no seu tato visual arrebatador, com fenomenal uso de sua iluminação expressionista, suas sombras sempre presentes e esmagadoras em cena. A primeira noite no castelo entrega isso perfeitamente. Um assustoso conde que dá a entender sua estranheza, mas mostra a que veio na noite. Na madrugada do medo. Perambulando por corredores, sua sombra à caça por novas vítimas, numa imposição de apavoramento poucas vezes vista no cinema. A enfermidade abusiva. Temos um material que enfileira momentos clássicos. Entre os quais, a chegada da besta no encontro à mulher; o primeiro encontro e primeira noite ao ataque monstruoso nas sombras do seu castelo; a sequência do Barco; a chegada na cidade Wisborg; a morte trágica. Condenação. Maravilha. Como era de se esperar da escola cinematográfica citada, há muita força na cenografia. Cenários como partícipes na criação da tensão e refletindo personalidades. Algo caro ao horror, contemplado, quiçá criado, pelo expressionismo alemão. Cenários trabalhados e cheios de formas geométricas. Pontiagudas. Compridas. Opressoras. Exilando figuras a seus lugares dentro do espaço cênico, tal qual Hutter preso num castelo sombrio sempre temendo o que viria à espreita sob qualquer cômodo. Outro ponto é a trilha original de Hans Erdmann como parte direta da narrativa. Impondo sensações e objetivos. Delineando a narrativa à sua maneira, moldando o espectador naquele nefasto filme de arquétipos comuns junto ao pavor desconhecido. Isso já era estabelecido no cinema mudo, no qual a trilha tinha papel ainda mais forte na narrativa. O lance aqui foi atrelá-la à nossa querida categoria do podre.

Vampiros e a praga. Isso nos leva a um mote que vejo como primordial na obra. O sanguessuga sendo o medo intrínseco através da peste bubônica. Um desastre que assolou a Eurásia por anos, tendo seu auge ao fim da Idade Média, e dizimara 200 milhões de almas. O monstrengo reflete os ratos. A transmissão e a disseminação desastrosa. A tragédia viva chega a Wisborg. O barco. Sequência sensacional que mostra o crescimento dessa pestilência. O uso visual dos roedores nos barcos e navios, nos quais transmitiam a pandemia sem precedentes, estraçalhando quem se pusesse no caminho, assim como era a propagação original da moléstia. Tal qual este morto-vivo, velho e pútrido, sem deixar de ser intrigante. As sombras no temor. As ratazanas. O flagelo. Feridas no pescoço da galera. Alusão a esta cólera europeia com os ratos, com o vampiro carregando o medonho, o cruel. O prenúncio da desgraça. O caixão funciona exatamente nisso. Os gabirus saem dele.

Nosferatu, a mazela. O intangível desconhecido que destrói tudo ante o objetivo alimentar, seja este carnal ou emocional. Sai o anormal dentro dele para profanar corpos e exigir seu sangue. Mesmo que se defenestre a cidade inteira. Sugando a vida como uma execração incurável. Maldição. Os paletós de madeira carregados pela cidade. A ruindade se espalha. A epidemia. A perspectiva da mácula. Como num plano no vaguear de Orlok a carregar seu caixão na chegada à cidade sozinho, como se a população já amedrontada e parte sendo dizimada estivesse a fugir e a se esconder do pernicioso que chegaria. Há outros planos de suas vítimas sendo levadas pelos cidadãos em caixões também, numa simetria interessante. A confirmação no presságio maléfico. Dessa tumba sai a criatura e a doença, e, a posteriori, a reboque, chega a destruição, onde entram as vítimas, nestas caixas mortuárias. Um círculo vicioso abominável. 

O vampiro naquele novo ambiente atrás da amada, na qual ele vira numa pequena foto e se empolgara. Além de todo o aparato visual e alusões a fuleiragens destruidoras na Europa e na Ásia, é bom comentar a atuação de Max Schreck. O amaldiçoado sinistro. O overacting teatral a serviço do terror. Sou um cachorro cego num labirinto de hienas famintas quando se trata de cinema mudo, porém, o que Schreck faz aqui é um absurdo. Assustador e num perambular corpóreo que sempre causa asco e instiga a presença maligna. Desde seu olhar destroçado aos movimentos de seus membros nos acometendo a um balé macabro. A verdadeira doença. Sem deixar ainda de se explicitar o caráter da atração cativante que esta figura emblemática é ainda capaz de causar. Orlok e Helen Hutter. Ela, atraída por este magnetismo. A humanização final, por conta da Helen, da peste, da praga, do diabo, pela emoção que o mesmo sente por sua musa. Aberração de carga dramática. 

Filme que instituiu um manual no gênero. A presença do perverso, das sombras. A monstruosidade tácita, a construção do horror através da iluminação e dos cenários preparando para a entrada do bicho escroto. O amor como catalisador desse mal, como se sua essência dependesse disso, e que resultara no viciar e no condenar. Vida e morte. Os insetos se matando. A função da vida é matar numa permanência circular. A obra cita esses elementos mostrando a circularidade dos processos da existência, como se aquele monstro fosse mais um em busca de objetivo comum com métodos não aceitos por nós. Não tolerados. Uma praga viva. Nosferatu é um caçador, matador, uma fera, uma doença, tal qual nós mesmos já fomos. E ainda não o somos? 

Texto integrante do Especial Nosferatu

Comentários (1)

Luís F. Beloto Cabral | sexta-feira, 29 de Novembro de 2019 - 10:41

Sou apaixonado por uma cena em particular desse filme: quando Nosferatu adentra no quarto da mocinha, com a sua sombra projetando-se sobre o corpo dela até a mão subitamente se fechar em cima do seio, com ela se contorcendo de dor e prazer.
Belíssimo filme e ainda o meu preferido do Murnau. Ainda não vi o remake do Herzog.

Ted Rafael Araujo Nogueira | sexta-feira, 29 de Novembro de 2019 - 11:02

Está cena é sensacional. O uso de luz é sombra numa relação Carnal e psicológica. Foda.

Faça login para comentar.