Saltar para o conteúdo

Pânico

(Scream, 1996)
7,6
Média
665 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Fôlego novo para o cinema de terror em Hollywood.

8,0

Já faz alguns anos em que não me mantenho bem informado a respeito das novas escavadas do público cinéfilo por aí, mas até onde sei, o subgênero do terror conhecido como slasher foi arquitetado por nada menos que o próprio mestre Bava, com o seu clássico Reação em Cadeia, de 1971. Por convenção fundamentada na repetição histórica mesmo, entre os vários elementos que constituem um slasher estão: um grupo relativamente grande de pessoas, de preferência jovens, que vão um a um sendo assassinados; mortes de caráter orquestral; identidade geralmente desconhecida do assassino (embora haja notórias exceções), revelado apenas no final, quase nunca por conta da investigação empreendida pela polícia ou pelo grupo, mas pela simples exclusão (muitas das vezes todos os outros possíveis suspeitos estão mortos); a existência de um evento passado marcante para a comunidade; etc.

Mas enfim, é interessante que o subgênero nasça justamente desse  “Reação em Cadeia”, um filme que é cinismo e descompromisso puro; é um filme sem sinopse, sem história, no qual meio que as coisas só vão acontecendo mesmo, de uma maneira belíssima, engenhosa. A gente pode mencionar o começo do filme, por exemplo. Pelo que me lembro, tem um cara assassinando uma idosa cadeirante riquíssima, asfixiando-a com uma corda no pescoço. Após uma breve luta, a senhora morre. O assassino respira aliviado, apenas para ser igualmente assassinado segundos depois. A parada é desse nível de risível (ao mesmo tempo que é o maior filme do mundo).

Em 1996, quando Wes Craven juntamente com o roteirista Kevin Williamson lançam Pânico, filmes na linha slasher já estavam desgastados e raramente davam as caras num contexto de maior destaque nos cinemas. O filme de Craven deu uma grande sobrevida aos slashers nesse sentindo, tendo faturado, sei lá, um zilhão de vezes mais do que custou e tudo mais, então eu fiquei tentando destrinchar, dentro apenas do que eu já sei e conheço de cinema, o porque do sucesso (ignorando ao máximo a verdade mais escancarada em situações desse tipo, que é meio que o sucesso grandioso de um filme não se explica completamente, pois os fatores que contribuem para esse sucesso são numerosos demais para serem calculados).

Bom, o mais importante de tudo é que o filme é muito bom. Todo mundo sabe que o Wes Craven é um dos americanos mais competentes do cinema moderno de terror; porém eu pretendo falar sobre esse aspecto (do filme ser bom) mais a frente do texto, porque aí já é análise do filme pura e simplesmente mesmo.

Segundo, pelo mesmo fator midiático de “Psicose” (1960, Alfred Hitchcock), e aí a gente tem certeza absoluta que essa é inclusive mais uma das muitas referências que o filme de Craven faz ao cinema de terror/suspense. Em “Psicose”, Hitchcock chamou a Janet Leigh para ser a pseudoprotagonista de seu filme, apenas para foder com os espectadores, algo que o Hitchcock adorava fazer. Na verdade, Hitchcock trabalhou ali com uma espécie de metalinguagem cognitiva ou algo assim, escalando uma atriz que não era simplesmente mega famosa, mas era a atriz mega famosa DO MOMENTO, e aí ele escala essa atriz em seu filme enquanto os espectadores são confrontados com uma noção de que obviamente essa atriz vai chegar de certa forma ilesa até o final, porque ela é a mocinha, e também ela é a Janet Leigh, e quando você tem a mocinha e a Janet Leigh, meu amigo, você com certeza vai aproveitá-las ao máximo; mas a gente sabe que a Janet Leigh morre por volta dos 40 minutos de “Psicose”, e que o protagonista é o próprio vilão, então essa metalinguagem cognitiva do Hitchcock serve pra catalisar o choque no espectador, pra causar inquietação e tudo mais, e é uma das instrumentalizações mais potentes que o cinema americano já fez; e em “Pânico”, Craven escala Drew Barrymore como Casey, a primeira garota assassinada no filme, logo no sétimo minuto. Bem, como eu disse, me propus a chegar nesse texto com a formação que eu já tinha, então eu não sei ao certo se o peso de uma Barrymore é sequer similar ao de uma Janet Leigh em suas respectivas épocas, mas eu sei que Barrymore fez “E.T.” quanto tinha, sei lá, 4 anos?, e em 1996 ela também apareceu no filme musical do Woody Allen e o Allen é notório por trabalhar com atores bem em voga e bem famosos então, sim, ela certamente era famosa. Portanto o Craven usa desse efeito midiático, de estampar o rosto da Barrymore no pôster e mata-la logo aos 10 minutos de filme, e isso atrai público, atrai gente interessada, mas o que difere a MANEIRA pela qual o Craven usa disso da maneira com a qual o Hitchcock usa é:

(Terceiro), a maneira com a qual “Pânico” trabalha com o gênero, porque obviamente Craven não tá tão interessado na tal “metalinguagem cognitiva” do Hitchcock, né, ele escala a Barrymore simplesmente pra zoar e fazer graça mesmo, mas ao mesmo tempo ele também fez isso como uma maneira de começar a trabalhar as ideias de gênero no seu filme, porque uma das questões bastante presentes nos filmes terror é que são filmes geralmente baratos e que por isso não contam com atores muito famosos, então, num filme que se propõe a trabalhar metalinguísticamente questões de gênero do terror, colocar a Drew Barrymore num papel de protagonista é um contraponto total. E assassinar a Barrymore aos dez minutos de filme é reforçar essa ideia, é gritar a todo pulmão que tá errado mesmo e que ela tem que sair dali o mais rápido possível porque ela é famosa demais pra existir num filme que paga tributo aos grandes clássicos de um cinema que é notoriamente feito no baixo-orçamento, na raça e na paixão (muito embora a presença alienígena da Courteney Cox esteja ali, mas eu vou simplesmente ser 100% safado e ignorar isso mesmo, sem pudor algum, apenas porque eu não entendo mesmo porque ela está ali, muito embora goste de verdade da atriz e recomendo que todos vejam Cougar Town, uma série de comédia muito decente).

Ainda sobre o ponto 3, acredito piamente que a metalinguagem de “Pânico” é essencial  para seu sucesso, porque isso estava muito em voga nos anos 1990. Eu tenho feito TCC sobre cinema de gênero nos anos 1990 nos últimos meses (então eu estou sendo novamente safado em aliar o material do meu TCC com o material do meu texto aqui no Cineplayers, mesmo), e uma das informações que eu mais encontro na pesquisa é que o:

Terreno do entretenimento massificado nos Estados Unidos dos anos 1990 estava amplamente saturado” (frase presente num ensaio de um cara chamado Jim Collins, um ensaio chamado “Genericidade nos anos 1990: ecleticidade irônica e nova sinceridade”).

Talvez por isso a gente tenha nessa década a ascensão de diretores que vieram de um cenário independente, e que conseguiram quebrar a lógica da velha-nova Hollywood, através de determinados vieses, como por exemplo a sinceridade formal do Soderbergh, ou o pastiche do Quentin Tarantino, ou a estética alucinada do Paul Thomas Anderson, ou a ironia brutal dos Irmãos Coen etc.

Essa saturação se observava no próprio desgaste do gênero de terror como um todo, incluindo as vertentes e/ou derivações desse gênero, como o suspense, o horror, o policial e também o slasher. Os caminhos do cinema de gênero já haviam sido mapeados pela percepção coletiva do espectador de cinema, acredito, e para que o filme desse conta de sobreviver ao julgamento de quem assiste sem ser imediatamente desclassificado ele teria que trabalhar com novas proposições de gênero (como, por exemplo, Dança com Lobos ou Os Imperdoáveis, no gênero faroeste).

A proposição do Craven com “Pânico” é justamente partir da verdade notória de que todo mundo já está cansado de saber quais são as lógicas dominantes num filme de terror/slasher, e que não faz sentido nenhum um diretor de cinema tentar mascarar isso de alguma forma, e que toda a experiência do filme poderia ser potencializada no momento em que diretor e espectador pudessem, juntos, desbravar o terreno do filme, ciente como estão de seus mecanismos e suas fórmulas.

Essencialmente, portanto, “Pânico” é um filme que acontece dentro de outro filme, com a diferença que o filme diegético ocorre sem a necessidade de que se existam câmeras e microfones. Os personagens parecem ter completa ciência de que estão fazendo parte de alguma grande homenagem, quase sempre eles “saem do papel” ao tirar onda com a situação e/ou o assassino, para depois voltarem a “atuar” novamente, em prol de uma espécie de esforço de apreciação de gênero terror coletivo.

É muito importante deixar claro que “Pânico”, de Wes Craven, é muito diferente de Todo Mundo em Pânico, de sei lá quem, pois não se trata de uma paródia barata e inconsequente, destinada principalmente às risadas (nenhum problema em ser isso), mas é uma questão de perceber que Craven possui uma ambição bem clara, que não é a de criar chacota com uma estética de cinema que ele obviamente venera (pois é através dela que ele criou seus melhores e mais elogiados filmes)... É justamente conseguir, munido desta vez de novas ferramentas, colocar em evidência esse cinema, através de discursos que sejam compatíveis com a época que ele se encontra, provando que o gênero é capaz não de reformulações, mas de ajustes que tornam possível que esse cinema (assim como muitos e muitos outros) seja imortal.

Retorno, agora, a uma análise mais geral do filme, afim de tentar tratar de certas questões, como por exemplo a marginalização à qual os filmes de terror são relegados, e sobre como essa marginalização afeta diretamente a apreciação cinematográfica de algumas pessoas mesmo. Quer dizer, vamos tentar esquecer por alguns segundos que Dario Argento é a melhor pessoa de todos os tempos, enquanto a gente esbarra em certos comentários a respeito de “Pânico”, como por exemplo um que diz: “a suposição de que há algo inerentemente esperto em um filme slasher fazendo referência tanto a seu próprio gênero quanto ao processo de filmagem é uma falha fundamental nessa comédia sangrenta e cansativa”.

Bem, existe ali um “inerentemente” que dá algum resguardo pra essa fala que atinge, na minha opinião, em cheio o gênero de terror com uma flecha de puro preconceito, né, porque o problema existe também quando a gente define “Pânico” como comédia, o que é meio verdade, mas é uma verdade completamente limitada e mau caráter, pois o filme também é terror, e digo mais, é essencialmente terror, com vários momentos de alívio cômico, como é perfeitamente comum no gênero, algo que qualquer pessoa que assiste uma pequena quantidade de filmes consegue facilmente observar. E aí eu acredito que não compreender um gênero é o primeiro passo para marginalizá-lo.

Além disso, o teor do comentário que citei (oriundo de uma crítica do Chicago Tribune, se não me engano) parece repercutir a ideia de que um filme de gênero terror deva, necessariamente, se ater à produção das sensações mais imediatamente relacionadas ao gênero (o de assustar ou causar medo, por exemplo), ao invés de almejar correlações mais, digamos, cerebrais. Da mesma forma a gente também comete o engano de dizer coisas como “filme de comédia bom é filme que faz rir” e etc. E aí a gente pode pegar o Dario Argento, por exemplo, e refletir um pouco a respeito se a questão de Suspiria (definitivamente o melhor filme do mundo) ser tão bom está muito mais relacionada a capacidade que este filme tem de causar medo, ou se tem mais a ver com as sensações sonoras e visuais que o filme desperta, com as luzes e a trilha do Goblin, tão sutil quanto uma voadora, e a maneira fantástica que o Argento conduz a câmera, monta a cena e tudo mais.

E o mais importante, como eu já falei – ou tentei falar: o que acontece o tempo todo em “Pânico” está um pouco mais além da simples referência; chamar de referência é usar um vocabulário extremamente limitado para falar do processo de construção de sentidos no filme do Craven. É um estudo apuradíssimo do gênero, de seus fenômenos diegéticos e apreciativos, da maneira que, tanto o gênero quanto à própria experiência cinematográfica é percebida pelo espectador, especialmente dentro de um contexto americano. Os recortes e colagens empreendidos por Craven  não ocorrem por mera citação. Um dos maiores diretores de gênero do cinema americano destrincha o terror, dissecando-o como um cadáver, costurando-o de volta, criando relações e assimilações afim de, como resultado, parir uma obra que é ao mesmo tempo complexa, significativa e leve, um tecido inflado pós-moderno, que diz muito a respeito da sofisticação que o cinema de gênero, apesar da marginalização, é capaz de alcançar, e também diz muito a respeito do nível de sofisticação que o público massificado, especialmente aquele dos anos 1990, possuía.

Comentários (10)

Lucas Souza | segunda-feira, 15 de Dezembro de 2014 - 23:52

Craven é foda mesmo, pouquíssimos deslizes na carreira...
O Filme é nota 8,0 mesmo! Só não gosto do 3º filme, mas este o 2º e o 4º são fenomenais!
Já o texto é nota 10,0! Sem duvidas top 5 desse ano!

Paulo Faria Esteves | terça-feira, 16 de Dezembro de 2014 - 19:45

Ainda nem li, mas é muito bacana ver o Cineplayers lembrar-se de repente de Pânico. Essa quadrilogia - o primeiro, acima de tudo - foi uma das melhores coisas que aconteceu à História do cinema de terror. *.*

Diego Henrique Rezende | terça-feira, 16 de Dezembro de 2014 - 21:19

Parabéns, Guilherme, sou leitor assíduo do site e, confesso, esta fora a melhor crítica do ano. Porque, justamente, não fora apenas um crítica, mas um estudo completo do filme e do próprio gênero. Quanto ao filme, um clássico.

Faça login para comentar.