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Críticas

Cineplayers

O abismo entre elas.

8,0
De um lado, Camila (Joana de Verona) enxerga sua paciente com uma curiosidade profissional quase indiferente. Do outro, Glória (Grace Passô) encara sua terapeuta com desconfiança e ceticismo. Camila é portuguesa, branca, rica, e passa uma temporada no Brasil concluindo seu mestrado, aproveitando as atrações turísticas do Rio ao lado do namorado. Glória é brasileira, negra, pobre, moradora de uma favela e trabalha como ascensorista na universidade onde Camila estuda. Uma é tão distante da outra em todos os sentidos, que nem a formação profissional de Camila é o suficiente para capacitá-la a lidar com tudo o que ouve de Glória nas sessões de terapia. O abismo entre elas é profundo demais, e conforme Praça Paris (idem, 2017) procura diminuir essa distância, mais assustador se torna a aproximação desses dois mundos. 

Lúcia Murat é uma cineasta que ao longo da carreira sempre colocou personagens femininas em situações desafiadoras, ao mesmo tempo em que pontuava muitas de suas obras com a presença de um olhar estrangeiro sobre assuntos relacionados ao Brasil e sua sociedade. Em Praça Paris, a diretora tem no roteiro o apoio do escritor de romances policiais Raphael Montes, o que confere ao longa um aspecto de filme de gênero jamais antes trabalhado por Murat. De certa forma, é aqui que se convergem de vez os temas pelos quais ela sempre transitou, e o resultado é surpreendente. 

Questões como o preconceito, a desigualdade social e a violência contra a mulher são tão inerentes ao cinema brasileiro que hoje parece impossível fazer um filme nacional que consiga escapar de todos esses temas, mas o fato é que grande parte dessas produções arranham o artificial e jamais conseguem chegar à raiz do problema e propor uma discussão de fato abrangente. Em Praça Paris, Murat consegue ir além e explora o nascimento do preconceito e da violência a partir de um único e instintivo sentimento humano: o medo. 

Camila começa cheia de boas intenções em ajudar Glória e explorar a fundo as dores dela a fim de traçar uma linha de tratamento eficaz, mas logo que começa a ficar muito próxima e íntima daquela realidade, percebe não ser capaz de compreendê-la em sua totalidade e passa a temer a figura de Glória. A paciente, por sua vez, no passado foi levada a uma atitude inesperada por conta do medo que sentia em um ambiente de violência e abuso sexual. Ambas se deixam mudar e moldar pelo medo que sentem e a partir disso nasce o preconceito da primeira e a violência da segunda. O preconceito e a violência, uma vez inseridos na questão, aumentam a distância e a tentativa mútua de compreensão, empatia e ajuda prática. 

Obviamente, Murat e Montes não são pueris a ponto de pressupor que o preconceito e a violência surjam somente a partir de um medo isolado, mas contextualizam o passado e a carga ancestral de cada uma delas e revela aquelas atitudes como consequências de anos, décadas, séculos de histórias e cargas passadas diferentes, que de alguma forma transmitem de geração em geração um medo e uma atitude incubados em cada indivíduo, esperando a hora certa para vir à tona. Cedo ou tarde as realidades antes tão distantes de Camila e Glória irão se cruzar numa aproximação aterrorizadora. Enxergar o outro lado do abismo, o além de nossas realidades, pode ser um processo tão esclarecedor quando devastador. 

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