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Críticas

Cineplayers

A vivência do diretor com fatos semelhantes aos apresentados no filme fez o mesmo criar uma obra cheia de coração e alma, imperdível.

9,5

“A música fica melhor quando realmente aconteceu?”, pergunta William Miller, o protagonista de Quase Famosos, ao guitarrista da banda Stillwater, perto do final da produção. A resposta acaba não vindo, mas, se a palavra “música” for substituída por “filme” e a pergunta for dirigida a Cameron Crowe, a resposta será um definitivo “sim”.

Muito antes de virar um cineasta, Crowe foi jornalista da revista Rolling Stone, inclusive acompanhando bandas em suas turnês. É essa experiência pessoal que o diretor retrata com paixão e talento em Quase Famosos. No filme, o alter-ego de Crowe atende pelo nome de William Miller, um garoto de 15 anos apaixonado por rock ‘n roll. Morando com a mão protetora, William tem a chance de acompanhar a banda Stillwater durante a turnê, com o objetivo de escrever sua primeira reportagem para a Rolling Stone. Durante a viagem, William faz amizade com os músicos e acaba se apaixonado por uma das groupies.

Não restam dúvidas que a conexão emocional de Crowe com o material fez toda a diferença ao resultado final de Quase Famosos. Por mais que seja narrativamente impecável e atuado com maestria, o filme acaba tocando o espectador por possuir coração e alma, algo cada vez mais ausente no cinema atual. É possível sentir em cada frame da obra a dedicação, o cuidado e a reverência de Crowe com o material. Para ele, colocar esta história na tela parece ser uma forma de reviver aqueles dias, com todas as mudanças e prazeres que presenciou. E, mais do que tudo, parece uma maneira de Crowe declarar todo o seu amor pela música (leia-se rock). A cena na qual Penny rouba a caneta de William durante um show é um exemplo disso. Ela parece dizer ao rapaz: “Esqueça a razão, o emprego e as regras. Apenas curta.”

É impossível não se deixar levar pela câmera apaixonada de Crowe. Em um roteiro escrito com sensibilidade, o cineasta apresenta de forma sutil o início da decadência do rock, quando deixava de ser algo passional para se tornar apenas um negócio lucrativo. É o que fica claro na cena em que a gravadora envia um novo empresário para a banda ou quando uma das groupies antigas fala sobre as novatas.

Mas Crowe não se rende. Para o cineasta, o poder da música supera tudo. Naquela que talvez seja a mais bonita cena do filme, a banda se encontra de cara emburrada dentro do ônibus após uma briga. Ao fundo, ouve-se a bela Tiny Dancer. Pouco a pouco, os passageiros começam a cantar a música, acompanhando a voz e a melodia de Elton John. Em apenas alguns segundos, sem nenhuma conversa, todos estão em sintonia novamente. Esta talvez seja a cena mais emblemática do filme, aquela que resume com perfeição o que Crowe quer dizer com sua obra.

Claro que todo este cenário (a recriação de uma época, o fim do rock, a música como forma de vida) jamais funcionaria se a história e os personagens fosse deixados de lado. E aí mora o outro grande tema de Quase Famosos: a descoberta de William como adulto. Mesmo com a declaração ao rock ‘n roll, Quase Famosos é, basicamente, aquilo que os americanos de “coming of age story”, um filme sobre um adolescente aprendendo sobre a vida, seja o que ela tem de melhor e de pior.

E que melhor lugar para aprender sobre isso do que em uma turnê com uma banda de rock? Até então controlado pela mãe, William subitamente encontra-se jogado em um ambiente onde predominam as batalhas de egos, o amor e suas armadilhas, as ilusões e, claro, sexo e drogas. Interpretado com delicadeza por Patrick Fugit, o personagem passa por um aprendizado que resulta em uma transformação, sendo o William do final do filme não mais o mesmo do início.

William, porém, não é o único personagem bem desenvolvido pelo roteiro. Russell Hammond é um músico de extremo talento, preso em uma banda que, provavelmente, não o deixará chegar aonde pode. Insatisfeito com essa posição, ainda que continue tentando manter o Stillwater unido, Hammond acaba oscilando entre momentos de gentileza e destempero, uma personalidade difícil que Billy Crudup traz à vida com talento.

Já a veterana e sempre sensacional Frances McDormand evita que a mãe de William se torne um clichê irritante como o alívio cômico do filme. Ainda que as atitudes exageradas dela como mãe consigam diversas risadas, McDormand consegue criar uma personagem real, que luta contra sua própria natureza – e sofre por isso – para dar liberdade aos filhos.

Mesmo com esta homogeneidade, o destaque do elenco vai, indiscutivelmente, para Kate Hudson. A sensação que fica cada vez que Penny Lane aparece em cena é a de que Cameron Crowe colocou um holofote unicamente sobre Hudson, deixando todos os outros atores na sombra. A atriz simplesmente brilha. Não é à toa que Quase Famosos lançou-a ao estrelato. Não apenas sua presença é cativante, como o talento na construção da complexa personagem – repleta de dúvidas e necessidades de fuga – é evidente. Hudson é a responsável por um dos momentos mais sublimes em termos de atuação nos últimos anos, quando William diz que ela foi apostada por quem amava. A reação da atriz é digna de aplausos: um olhar carente, uma lágrima fugidia, um sorriso amarelo e a sensação de que um coração acaba de ser partido. Simplesmente sensacional.

Obviamente, com essa galeria de personagens verossímeis e apaixonantes, a história de Quase Famosos flui com extrema naturalidade. É agradável passar um tempo ao lado de William, Penny, Russell e companhia, o que faz com que o filme jamais se torne cansativo. Como se não bastasse, Crowe insere diversos momentos de humor na obra, seja nos diálogos (“Vocês acham que Mick vai estar cantando aos 50 anos? Claro que não!) ou com gags visuais (quando a personagem de Fairuza Balk dá de cara em uma parede ao passar um recado para William no ônibus).

Deve ser comentada, ainda, a opção do diretor em retratar tudo de maneira quase paradisíaca. O mundo do rock exibido por Crowe é uma versão light do que se sabe que foi. Em Quase Famosos, todos são queridos, as drogas não prejudicam e o sexo é praticamente escasso. Alguns podem tomar esse ponto de vista como um defeito do filme, mas, na realidade, essa ótica romântica revela-se seu grande trunfo. Quase Famosos não é um documentário sobre aquele tempo, e sim uma declaração de amor de um cineasta completamente apaixonado por música.

Engana-se, porém, quem acha que, por ser um filme leve, Quase Famosos é entretenimento escapista. É, definitivamente, um filme fácil e agradável de se assistir, mas é também uma obra de conteúdo, pintando um painel de uma época que não existe mais e revelando as dificuldades de um jovem em encontrar seu lugar no mundo.

Contando com uma trilha sonora fabulosa (The Who, Led Zeppelin, Black Sabbath e até o próprio Stillwater), Quase Famosos pode não ser o melhor e mais inovador filme da história. No entanto, a sinceridade, o coração e a delicadeza de cada segundo da produção colocam-na na lista dos meus favoritos de todos os tempos. Com Quase Famosos, Cameron Crowe construiu uma das mais belas homenagens ao rock ‘n roll já vistas. E, assim, acabou homenageando o próprio Cinema.

“- O que você mais gosta na música?
- Para começar, tudo.”
Diálogo entre William Miller e Russell Hammond em Quase Famosos.

Comentários (3)

Cristian Oliveira Bruno | quarta-feira, 04 de Dezembro de 2013 - 18:02

A cena de Tiny Dancer e a do avião são inesquecíveis!! Que filme!!!!

André Luís da Silva Coutinho | quinta-feira, 07 de Janeiro de 2016 - 19:58

Cristian, concordo plenamente! São as cenas mais memoráveis do filme. Já o assisti mais de uma vez, incluindo a versão estendida que adiciona 40 minutos ao filme, o que chega a ser um presente. Uma duração maior junto com os personagens que aprendemos a amar durante o longa. Fugit, Crudup, McDormand e Hudson fantásticos. Afinal, o elenco todo flui bem junto de uma maneira rara.

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