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Críticas

Cineplayers

Ontem, hoje e amanhã pelos doces olhos de Val.

10,0

O primeiro plano do filme de Anna Muylaert é uma cena de 10 anos antes da narrativa que irá correr, pelos 105 minutos seguintes a ele, uma sequência de menos de 5 minutos onde a protagonista Val é mostrada pela primeira vez na companhia de Fabinho, o filho dos seus patrões, então com 8 anos, na qual será muito mais que empregada. Nessa passagem relativamente rápida já observamos desenrolar entre as personagens toda a cumplicidade e os laços que os manterão unidos durante o longa (na relação que talvez seja o mote escondido da trama), já um dos mais queridos e ovacionados produtos do nosso cinema na atualidade. Se O Som ao Redor foi aplaudido e obteve respeito e admiração ao redor do globo, as armas de Que Horas Ela Volta? até agora são o calor humano e o coração, obviamente sem jamais desprezar o talento de sua autora e realizadora.

Esse é o quarto filme de Anna, que estreou da forma mais explosiva possível com o desconcertante Durval Discos, filme de gênero mais que híbrido que já mostrava sua diretora rasgando um espaço pra si na nossa cinematografia. Seu passo seguinte foi igualmente bem sucedido, e É Proibido Fumar teve uma carreira brilhante no circuito comercial, além de consolidar seu talento como roteirista e realizadora. O escorregão de Chamada a Cobrar é completamente superado em janeiro desse ano, quando Anna chega a Sundance e obriga o festival a criar um prêmio de atuação que não existe para premiar suas protagonistas, passa pelo prêmio do público em Berlim e finalmente aterriza nos nossos cinemas após estrondoso sucesso de público e críticas unânimes na Europa e nos EUA. Começa agora então aquele momento onde todos já sabem qual o nível do produto e o nariz já está pronto para ser torcido; bem, não há qualquer motivo para tal.

Anna apresenta um atestado de maturidade artística invejável. Não há aqui as firulas visuais onde sua estréia foi erroneamente acusada de se apoiar, nem um excesso de despojamento que seu segundo longa poderia ter apontado. Estamos diante de uma cineasta plena, bem resolvida imageticamente e afiada como roteirista, cuja câmera passeia em cena num balé invisível e repleto de elegância e graça num filme que nunca é menos do que primorosamente dirigido, desnudando complexidades e aproximando suas lentes em cenas desconcertantes, e entrega o que hoje é o calcanhar de Aquiles do nosso cinema: o filme capaz de se comunicar com qualquer pessoa a perfeição, e escancara a porta do "filme médio" com um resultado nível A.

Há muito ouvimos essa reclamação do público e do circuito exibidor: onde estão os grandes filmes que nem são os blockbusters milionários que arrastam multidões, nem são o "cinema indie de invenção" que não consegue se comunicar com a grande massa? Algo que não seja o besteirol das comédias sub-televisivas estreladas pela nossa nata de comediantes, mas também não sejam os delicados filmes que passeiam pelos festivais de Tiradentes, Brasília e Semana dos Realizadores. Esse produto com o qual poucos conseguem lidar, mas que é produzido e vem minguando bilheterias raquíticas por conta do total despreparo do circuito para com essas joias. Pois Anna chega com seu filme de fotografia sublime (de Barbara Alvarez) e montagem notável (de Karen Harley) mostrando que não tem qualquer interesse em ser cidadã de segunda classe dentro do nosso cinema hoje; o filme é impecável esteticamente.

Aliás, o filme é impecável, ponto. O roteiro de Anna (ainda que provavelmente tenha aberto espaço para cacos do elenco) tem uma centralidade invejável, sabe exatamente que história quer contar e o que quer mostrar, e nunca é pouco. O filme é feminista, moderno, humano, fala sobre o Brasil de ontem e também o de hoje, do eterno arranhão social entre classes no país, é um filme extremamente sutil de abordagem e ao mesmo tempo rasgadíssimo quanto ao seu teor sócio-político, isso tudo sem jamais deixar de criar pessoas e não estereótipos, pessoas com relações de afeto muito verdadeiras, vividas por um elenco nunca menos que soberbo.

Do acerto que é a naturalidade de Karine Teles até a discrição cênica de Lourenço Mutarelli, passando pelos rápidos porém marcantes momentos de Luis Miranda e Helena Albergaria, até chegar no âmago de sua humanidade que é o trio Michel Joelsas, Camila Márdila e Regina Casé.

A figura desestabilizadora que Camila representa ao chegar naquela casa destrói praticamente todos os alicerces muito bem delineados ali até então, e não somente o mais óbvio que seria o da relação de sua mãe com os patrões. Sem jamais incorrer em uma espécie de antipatia, Camila muda tudo em cena apenas abrindo olhos e ouvidos de todos; um acerto especial do roteiro foi não transformar a filha numa figura superior a mãe em seu tom contemporâneo, pois a menina não é professoral nunca e a bem da verdade parece bem caipira em diversos momentos. Seu contraponto óbvio é a sua mãe, que tem consciência exata do jogo que está ganhando há tantos anos ali e não há porque ser mudado de acordo com todos: patrões e empregados, não é? É aí que entra em cena também como figura desestabilizadora (mas de outro cerne) o filho dos patrões. Enquanto todos em cena jogam o jogo que se espera, Fabinho e Val tem um universo próprio, particular e desafiador às convenções estabelecidas previamente, talvez até mais atrevido que a própria filha. Outra nota 10 do roteiro? O rapaz ter literalmente vida independente aos pais e nunca se modificar diante da avalanche de coisas que se sucedem com a chegada da filha de Val; eles se amam, e seus intérpretes conseguem a medida exata do sentimento tão bonito que aquela mãe e aquele filho transformaram em algo que jamais será postiço.

Ainda que 'Que Horas Ela Volta?' jamais deva ser descrito como "o filme da Regina Casé" por ser infinitamente maior que isso, não dá pra não aplaudir de pé a escolha de Anna para sua protagonista no entanto. Regina é uma atriz gigantesca que entrega a Val pronta, e nunca questionamos a existência dessa mulher. Repleta de recursos e com a vivência de anos correndo o Brasil conhecendo trezentas Vals, Regina tem a fina atuação do elenco, irretocável e irrepreensível, dona de toda o linguajar e o gestual de uma mulher que conseguimos inclusive ler inteira, seu presente, passado e futuro (completando as belas elipses de informações) através de seu rosto e suas palavras, vivas. A parceria entre Regina e Anna, sua combinação de talentos e o acertado de suas entregas em suas respectivas áreas dentro do filme, talvez celebrado no momento onde Val finalmente ultrapassa a fronteira entre sua posição e a de seus patrões, rende o que talvez seja o filme nacional mais emocionante desde Central do Brasil e que explode na tela num momento onde precisamos olhar o atual estado das coisas dentro do grande umbigo que é esse Brasil todo imperfeito que o filme mostra, mas que no susto e na raça não perde a ânsia de acertar.

Comentários (33)

Luís F. Beloto Cabral | sexta-feira, 18 de Setembro de 2015 - 00:27

Achei até engraçado a cena da piscina que ela coloca justamente em slow-motion para prolongar o "sofrimento" daqueles que acham tal "fenômeno" algo totalmente fora de propósito. E honestamente, esse filme tinha todas as desculpas para se render ao melodrama barato, e mesmo com todas as ações no final consegue se manter bastante contido. Então acho sim que houve uma coisa especial ali. Uma oportunidade de mudança em meio a um contexto conservador, a qual, embora inofensiva a princípio, aspira a algo potencialmente incisivo. E honestamente, a recepção do público será mesmo o índice de uma arte inofensiva ou não inofensiva? Filmes como "Terra em Transe", independente dos seus inegáveis méritos, será que efetivamente tornaram-se mais do que uma arte inofensiva? E será que a arte, conservadora ou não, possui essa agência toda? Eu até acredito que possua, mas em proporções menores do que a gente gostaria que tivesse...

Alexandre Marcello de Figueiredo | sábado, 14 de Novembro de 2015 - 19:53

O abismo social entre patrão e empregado retratado de forma sutil e uma ótima atuação de Regina Casé.

Abdias Terceiro | domingo, 08 de Maio de 2022 - 23:35

Vi hoje o filme pela primeira vez.
Pensei ser mais sutil, mas é um suco de desconforto em diversos momentos, o modo como vemos a Regina nem dá pra lembrar que é ela fazendo uma persona.
Muito bem filmado, sensível, bonito e triste. Os contrastes das realidades a indiferença da patroa, cenas no transporte coletivo, na lida diária o cansaço físico o quarto inadequado da Val me causa tristeza pela insalubridade.
Mano , filmao.

Abdias Terceiro | domingo, 08 de Maio de 2022 - 23:38

Aliás Dane-se o Bruno Andrade e o Caio Lucas.

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