Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Todas as cores

6,0

Um universo de colorido exuberante, batida musical intensa e imerso no dia a dia de um bairro pobre do Quênia servindo de pano de fundo para o nascimento de uma história de amor pura, criada na juventude com o aparente descompromisso da idade. Poderia ser uma narrativa desenvolvida no Harlem, numa comunidade carioca, na periferia londrina, mas a estreia em longas da diretora Wanuri Kahiu é, em todos os sentidos, uma celebração do novo. Da nova voz, das novas cores, do novo olhar, da percepção refrescada, da necessária renovação pelo qual o cinema constantemente precisa passar e que a abertura para o barateamento dos meios de produção tem trazido muito mais avanços sociais que atrasos tecnológicos; aqui em Rafiki, inclusive especificamente não há nenhum. Há sim uma felicidade em acompanhar essa ágil trama que une duas meninas preparadas para estar em lados opostos.

Kena é filha de um casal separado que precisa administrar a criação da nova família do pai sem causar maiores traumas na mãe, ainda fragilizada pela separação. Durante um ataque a loja de seu pai por outras três meninas da vizinhança, ela conhece Ziki, filha do adversário político do pai de Kena. O fascínio é mútuo e imediato, e não precisa de grandes feitos práticos de câmera pra mostrar o nascimento de um sentimento: as meninas se olham, e o talento delas transborda tudo no olhar. Percebemos aí que Wanuri teria uma facilidade na empatia com sua história, tendo em vista que o protagonismo da mesma estava em mãos hábeis. Por mais feerica que fosse seu detalhamento estético, um longa alicerçado na construção de uma paixão desceria pelo ralo se não contasse com um elenco eficaz, e apoiado no carisma de suas protagonistas e na forma delicada com a qual elas constroem cada cena, em cada toque, em cada olhar, o filme conquista fácil.

Ciente da extrema simplicidade de sua narrativa, dos desdobramentos novelescos de seu enredo, mas também tranquila na exposição dos mesmos sem trair o espectador, Wanuri tenta resolver essas possíveis fragilidades com charme estético. A trilha sonora pulsa desde os créditos de abertura, que mostra uma espécie de prévia de momentos que veremos no próprio filme e abre de maneira empolgante a produção. Com uma paleta de cores tão vibrante como o país, que mistura tintas fosforescentes com uma aquarela extravagante, rapidamente mergulhamos na realidade local graças a sua direção de arte, figurino e esse arco-íris, que ultrapassa a literalidade pra absorver os valores que o filme quer empregar, de renovação de valores arcaicos, de um respiro juvenil sobre uma realidade que precisa ser renovada, e Wanuri abre seu leque de possibilidades sobre um mundo novo cuja forma de ebulir é a liberdade.

É igualmente bem-vindo a forma como o filme subverte o olhar às protagonistas. Kena, apresentada como uma jovem reservada, é quem se liberta e tenta viver o sentimento até as últimas consequências, enquanto Ziki é pura expansividade em cada gesto e atitude, mas se repele quando seu romance se torna público. Duas personalidades contrastantes do início ao fim, Kena tem uma meta a ser alcançada, já Ziki é uma força da natureza levada sem rumo. Infelizmente a trama política, que parece tão comprometida com a trajetória dos personagens, nunca é desenvolvida e/ou explorada como deveria, servindo como um quadro de rivalidade que nunca se justifica. E incomoda igualmente o fato de que apenas uma das duas heroínas serem internalizadas - Kena tem um arco dramático completo, enquanto Ziki parece servir apenas como complemento da trama, sem aprofundar e dar oportunidade a um elenco de grande categoria. 

Se entre as plateias locais locais Rafiki foi proibido pelo governo, no resto do mundo o preconceito ainda persiste, e a esse público é mostrado um atestado de liberdade às minorias, a um grupo que precisa ser normalizado de mulheres negras lésbicas que se sintam inseridas na sociedade como um todo, sem divisões territoriais ou preconceituosas. A diretora entende o poder do que estava filmando, da importância de seu foco, então apesar de não se aprofundar nos méritos de cada personagem, nem no relevo prévio e suas motivações, Wanuri enche seus tipos de carinho e suas imagens de sedução, permeando toda a duração com o fogo típico de uma estreia tão efusiva como essa, um lugar de humanidade em meio a incompreensão. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.