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Críticas

Cineplayers

A doce vida dos realities.

6,5

No período que pode ser considerado o auge do cinema italiano, uma obra marcaria a transição do neorrealismo para o que viria a seguir: Abismo de um Sonho (Sceicco Bianco, 1952), de Federico Fellini. Se o movimento anterior tinha como objetivo apresentar ao povo italiano a realidade de um país degradado, moral, econômica, política e socialmente, Fellini impunha sua visão particular à crônica social italiana, implementando uma estética fantasista e onírica que se tornaria marca de sua carreira.

Pois os dois últimos filmes de Matteo Garrone são como uma emulação desse período transitório: se Gomorra (idem, 2008) atém-se à realidade ao traçar uma crítica social de seu país, Reality - A Grande Ilusão (Reality, 2012) se apega ao estilo felliniano ao criticar uma sintomática crise de valores do mundo pós-moderno, relacionando a obsessão pelo dinheiro e pela fama instantâneos à ascensão dos reality shows (abordagem semelhante ao retrato de uma sociedade italiana entregue ao hedonismo, ao consumo e à influência estrangeira, em A Doce Vida [La Dolce Vita, 1960]).

Assim como no clássico de Fellini, a câmera de Garrone vem dos céus para mergulhar no que será seu ponto de observação. Ao contrário da cosmopolita Roma, o foco é Nápoles, tendo como primeira parada um casamento imponente, com direito a carruagem e popular vencedor do Big Brother italiano como mestre de cerimônia. Tamanha extravagância é pura aparência, como ilustra a fantasia de Luciano (Aniello Arena), que surge travestido para animar os convidados; não à toa, este é o protagonista da história, quem nos apresenta à verdadeira realidade daquela gente: uma comunidade em ruínas, onde Luciano tem de suar para complementar sua renda regular como peixeiro com esquemas de contrabando de robôs domésticos. É então que os familiares lhe convencem da grande oportunidade de conseguir dinheiro e fama fácil, pelo ingresso no Grande Fratello, perspectiva esta que se tornará uma obsessão na vida do humilde napolitano.

Tal introdução se refere a um ato inicial desnecessariamente longo, até que o diretor/roteirista se põe a brincar com o efeito alucinógeno dos reality shows no mundo contemporâneo, estabelecendo uma comédia de costumes que acentua a grave falência de valores morais, religiosos e culturais daquele povo. Nesse cenário, figuras estereotipadas demonstram exacerbada idolatria por Enzo (Raffaelle Ferrante, hilário como a celebridade instantânea), cabendo a figurinos extravagantes em tons quentes e à excelente trilha sonora de Alexander Desplat conferir o tom fabulista daquela realidade viciada. Assim, Garrone compõe uma narrativa imaginativa e satírica no maior estilo felliniano, concluindo seu conjunto de referências (e críticas ao consumo de realities) com muita elegância ao focalizar a mesma estátua de Vênus utilizada em Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, 1976) nos terrenos da Cinecittà - complexo que nos tempos áureos abrigava as filmagens de clássicos do cinema mundial e hoje sedia o Grande Fratello.

Se esse exemplo de sutileza cede lugar à obviedade quando o diretor verbaliza sua crítica a uma realidade que ignora os “limites do ser e do parecer, do verdadeiro e do falso” (aspecto este já evidente pelas reações hiperbólicas e artificiais dos selecionados para o Grande Fratello), o filme desanda de vez em seu terço final, quando Garrone estende a paranóia do protagonista por um terceiro ato redundante e demasiadamente extenso, sustentado na atuação de Arena (estreante que cumpre pena num presídio em Nápoles). Assim, Matteo Garrone gera um desconforto que até se mostra uma sacada interessante (se Luciano é transformado em personagem de um reality, e somos espectadores desse programa, a experiência tem de ser incômoda), mas não exime o longa-metragem de ser tão enfastiante quanto assistir a BBB, A Fazenda e afins em tempo real.

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