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Críticas

Cineplayers

Coutney Hunt e Melissa Leo, mulheres que entregam um filme de sensibilidade absolutamente feminina.

6,0

Em 1969, aos 49 anos, logo após a encerrar as filmagens de Movidos pelo Ódio, de Elia Kazan, a ainda jovem, bonitona e desejável Deborah Kerr resolveu encerrar sua invejável carreira de 6 indicações ao Oscar, porque os estúdios só lhe reservavam papéis de competentes donas-de-casa, esposas fiéis, mães compreensivas ou tias solteironas.

O tempo passou, as mulheres saíram às ruas para lutar pelo direito ao uso da pílula, ao voto, e à igualdade de salários, mas somente sendo muito ingênuo para negar que a visão que Hollywood (e a sociedade de um modo geral) tem da mulher não mudou muito em relação àquela vivenciada por Kerr. Basta ver o que dizia Joe Silver, produtor responsável pela quadrilogia Máquina Mortífera nos anos 80/90, para quem as personagens femininas de seus filmes só tinham duas finalidades: transar ou morrer.

Mesmo as obras aparentemente dirigidas essencialmente ao público XX, parecem querer dizer que a felicidade das mulheres só existe ao lado de um homem (vide Sob o Sol de Toscana, em que a personagem de Diane Lane, mesmo rodeada de amigos e pela paisagem italiana, parece só encontrar a felicidade quando se depara com um príncipe encantado) ou após a compra de um novo par de sapato (Sex and the City).

São cada vez mais raros os feitos de atrizes como Meryl Streep, Isabelle Huppert e Catherine Deneuve que, mesmo já tendo deixado pra trás o período balzaquiano, ainda continuam com a carreira a todo vapor, interpretando mulheres reais, em paz (na medida do possível) com as marcas que o tempo deixou em suas faces, sexualmente ativas e ainda plenamente capazes de atrair a atenção dos homens, se é que estão preocupadas com estas questões.

Em tempos em que o sucesso parece estar condicionado à busca corpo perfeito, lábios carnudos e litros cavalares de botox, a chegada de filmes como Rio Congelado sempre renovam as esperanças de que Hollywood passe a não mais enxergar as mulheres simplesmente como o sexo frágil.

Rio Congelado rema contra essa maré, trazendo não apenas uma, mas duas personagens femininas como há muito tempo não víamos no cinema americano. Fortes e decididas, elas sabem que terão que conquistar seus espaços – ainda que por caminhos por vezes escusos – mais pela força de suas atitudes do que pela beleza das suas silhuetas.  A verdade que brota das suas histórias as torna mulheres de carne e osso e faz com que os espectadores se interessem pela sorte a elas reservada.

A protagonista de Rio Congelado chama-se Ray Eddy (Melissa Leo). Ela mora numa pequena casa, no estado de Nova York, próximo à fronteira com a cidade de Quebec, no Canadá. Faltam dois dias para o Natal e ela acabou de ser abandonada pelo marido, um viciado em jogo. Desolada, sentada no banco do passageiro do seu carro, ela observa que, ante de se mandar, seu parceiro levou o dinheiro que ela guardava para a compra de uma nova casa. Ela chora. Fuma. A marca de nicotina nas suas unhas indica o vício. O olhar perdido no vazio, uma desesperança e várias interrogações. Agora, a encomenda está chegando e ela está sem um tostão pra quitar a dívida. 

Ray tem dois filhos, o adolescente TJ (Charlie McDemortt)  e o mais novo Ricky (James Reilly). TJ tem as rebeldias típicas da idade. Ao mesmo tempo em que supervaloriza seu pai, mesmo sendo este uma figura ausente, ele culpa a mãe por ela não conseguir lhe dar uma vida mais abastada. Quer sair da escola e trabalhar. Aposta com Ray que é capaz de ganhar mais dinheiro do que ela. Apesar de contestador por natureza, sabe que seu irmão mais novo depende dele.

Paralelamente o filme nos apresenta a personagem Lila, uma índia que reside num trailer dentro da Reserva Mohawk. Lila também é mãe. Mas ao contrário de Ray, seu filho não está com ela. Ele foi levado do hospital pela sogra. Às noites, de cima de uma árvore, ela observa à distância seu bebê nas mãos da avó. Não tem coragem de bater à porta e lutar pelo que é dela. Sabe que, por não ser branca, sua versão não será considerada pela polícia. Prefere sair em silêncio, deixando anonimamente, na soleira da porta, dinheiro para a educação da criança (os quais quase nunca são aceitos).

Lila ganha a vida fazendo tráfico ilegal de imigrantes dos EUA para o Canadá. Durante o inverno, o rio que separa as duas extremidades se congela de tal forma que é possível atravessá-lo de carro, sem o risco de acidentes. Lila precisa fazer novos transportes para ganhar dinheiro e continuar em condições de "educar" seu filho. Mas está sem o meio de locomoção, já que seus amigos da reserva indígena, cientes da contravenção que ela volta e meia pratica, proíbem que as lojas locais vendam para ela. Ray, no entanto, tem o carro. E melhor: com um porta-malas grande o suficiente para caber duas pessoas. Tanto quanto Lila, Ray também precisa de dinheiro. O vendedor da casa lhe deu um xeque-mate. Ela deve pagar pela encomenda ou perderá o sinal dado como entrada.

Os interesses comuns vão unir – para o bem e para o mal – o destino dessas duas mulheres.

Não é à toa que a direção e o roteiro de Rio Congelado pertençam a uma mulher. Courtney Hunt, em seu filme de estréia, sabe do que está falando. No limite, o tema de Rio Congelado é a força da mulher para vencer os obstáculos impostos pela vida, sejam eles oriundos da maternidade, do sexo masculino ou da própria sociedade de um modo geral. Vejam que no início, a relação entre Ray e Lila é pautada pela rivalidade e até uma certa animosidade. Ao final, é essa força feminina, esse aspecto indômito bem típico das mulheres, que as une numa solidariedade que ultrapassa quaisquer diferenças raciais, sociais e culturais.

Se fosse dirigido por um homem, Rio Congelado provavelmente perderia a riqueza destas sutilezas (vide, por exemplo, as derrapagens de Clint Eastwood na construção do personagem da Angelina Jolie, em A Troca). Sob o ponto de vista masculino, por exemplo, Ray poderia preferir driblar as dificuldades pela via mais fácil, deixando-se seduzir pelo policial interpretado por Michael O'Keefe (cuja demonstração de interesse parecia ser sincera). Ou então, por que não?, colocar o filho TJ para trabalhar. Courtney Hunt escapa dessas armadilhas,  demonstrando total do domínio do material (daí a justiça da indicação ao Oscar de melhor roteiro original). Mais do que atração pelo policial, a protagonista tem medo de ser pega por ele com imigrantes ilegais em seu porta-malas. Como então inserir na trama um eventual idílio romântico? Ray sabe também que seu filho não está na idade para trabalhar, mas sim de estudar. Ela prefere deixar o orgulho de lado e pedir um aumento ao chefe da loja em que trabalha, do que ver TJ jogando fora sua juventude atrás de dinheiro e amadurecendo antes do tempo. Filme bom é isso: a vida como ela é.

Sem dúvida, Rio Congelado não teria a mesma força se não fosse por Melissa Leo. Longe de ser uma novata, ela já havia deixado uma impressão mais do que positiva em 2003, interpretando a esposa do personagem de Benicio Del Toro, em 21 Gramas. Aqui, Leo tem sua primeira chance de ser o primeiro nome nos créditos. E ela não a desperdiça. A indicação ao Oscar está aí pra provar.

A atriz constrói seu papel de forma precisa, sem excessos e pieguices, trazendo a feminilidade de uma mulher adulta ante aos desafios que vida impõe. A Ray Eddy que ela compõe é direta e sem meias palavras: ao seguir o carro de Lila até o interior da reserva indígena, ela diz na lata: “esse é meu carro!”. Mais à frente, ela não pensa duas vezes em não dividir com Lila o dinheiro recebido pelo transporte de um dos imigrantes, e se justifica: “agora estamos quites”. Ao mesmo tempo que sabe se virar, demonstrar ternura, humanidade  e senso de realiada com seus filhos. A interpretação de Melissa Leo me lembrou muito a de Patrícia Neal, em O Indomado, o que não é pouca coisa.

O restante do elenco também dá conta do recado. O destaque, claro, vai para a desconhecida Misty Upham, como a índia Lila. Os atores mirins igualmente não fazem feio. E o sempre confiável Michael O'Keefe, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante em 1979 por O Dom da Fúria, prova que poderia aparecer mais vezes nas telas grandes.

Tocando na ferida de outros temas, como por exemplo, o tráfico ilegal de imigrantes entre EUA e Canadá, Rio Congelado é um filme forte, inteligente, oportuno e, no que diz respeito ao modo de retratar a mulher, real.

Comentários (1)

Bruno Kühl | quarta-feira, 21 de Setembro de 2011 - 19:26

"Rio Congelado é um filme forte, inteligente, oportuno e, no que diz respeito ao modo de retratar a mulher, real."
Nota: 6,0

(?)

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