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Críticas

Cineplayers

O estranho fascínio do cinema clássico americano.

6,0

Revisto hoje, várias décadas após seu lançamento, as qualidades de Rosa de Esperança parecem advir de aspectos e curiosidades localizados mais fora do filme do que dentro dele. Qualquer pesquisa na internet sobre os bastidores da produção revelará a grande influência que a obra exerceu na Europa, em especial na Inglaterra, que àquela altura da Segunda Guerra Mundial era um dos poucos países ainda não invadidos pela Alemanha nazista. Ficou famosa a frase do Primeiro-Ministro britânico, Winston Churchill, que Rosa de Esperança tinha feito mais pelo esforço de guerra do que um frota inteira de destróieres. Já nos EUA, o Presidente Roosevelt ficou tão impressionado com o discurso final pronunciado pelo personagem do vigário, que determinou que o mesmo fosse repetido nas transmissões de rádio da Voz da América, e atirado, em cópias de papel, por sobre toda a Europa. No entanto, quando olhamos para dentro do filme propriamente dito, é visível que, em muitos aspectos, ele não resistiu bem aos efeitos do tempo.
 
A narrativa começa no ano de 1939. As tropas de Hitler já são um realidade e o conflito mundial, algo a ser fortemente considerado. No entanto, os moradores da cosmopolita Londres parecem não se importar com a proximidade de uma guerra. Na primeira sequência, vemos carros para lá, pessoas para cá. Todos apressados, correndo atrás de seus compromissos. Uma dessas pessoas é Kay Miniver (Greer Garson). Ela está na fila para pegar um ônibus. Algo a incomoda. Ela olha para trás, para algum ponto indefinido. Sobe no transporte público, mas permanece irrequieta. Não satisfeita, desce do veículo no ponto seguinte e faz o caminho inverso. Chega ofegante ao seu destino, uma loja de artigos femininos. Indaga à vendedora se um determinado produto ainda está à venda. A moça não tem certeza. Vai até o fundo do estabelecimento enquanto a interessada aguarda, tensa, torcendo para que seu esforço não tenha sido em vão. De repente, sua expressão se suaviza e um sorriso se abre em sua face. O chapéu que ela tanto queria ainda estava disponível. Ela o manda embrulhar antes de mudar de ideia.

Mal sabia ela que a culpa pelo ato de esbanjar, seria compartilhada pelo seu marido, Clem (Walter Pidgeon). Ao mesmo tempo que ela gastava mais do que devia num chapéu, ele tirava o escorpião do bolso e comprava um automóvel mais moderno e veloz. Supérfluo, sim. Mas, afinal, "para que serve o dinheiro?", pergunta Clem para sua esposa, à noite, quando se preparam para dormir, já com seus respectivos segredos reciprocamente revelados.

As preocupações da dupla central são propositadamente frívolas. Elas servem para nos apresentar o modo de vida e de pensar dos protagonistas. Clem e Kay formam um típico casal suburbano londrino, bem de vida, ele um arquiteto, ela uma dona de casa. Ambos tem 3 filhos. Um deles, o mais velho, Vin (Richard Ney) estuda em Oxford. Ao retornar, ele se mostra mudado. Os estudos o fizeram enxergar o mundo de forma diferente. Nas primeiras conversas com os pais, cheio de panca, apresenta suas novas idéias sobre a estratificação social na Inglaterra. Para ele, a Terra da Rainha ainda vivia num feudalismo invisível, que acentuava as distâncias entre os mais ricos e os mais pobres.

Essa carapaça será quebrada pela jovem Carol (Theresa Wright). Eles se conhecem numa reunião na casa dos Miniver. Apesar de rivalizarem na idade, Carol se revela muito mais madura que o rapaz. Ela rapidamente percebe que por trás daquele jeito falastrão de Vin, há mais espuma do que conteúdo. Mesmo contemporâneos, ela se revela uma garota bem mais madura do que o rapaz. Logo na primeira conversa entre ambos e sem precisar levantar a voz, Carol derruba todas as teses de sociologia que ele trouxera da universidade. Daquela animosidade inicial, surge um flerte, que logo se transforma num tórrido romance.

Outra personagem importante dentro da trama é a avó de Carol, Lady Belton (Dame May Whitty). Além de ser reconhecida como uma espécie de socialite vitalícia da região, a grande façanha de Lady Belton é ser a eterna vencedora do concurso anual da rosa mais bonita da cidade. Não por acaso, sua flor sempre é a única concorrente da categoria. Naquele ano, porém, a história tem tudo para ser diferente: o funcionário da ferrovia, Sr. Ballard (Henry Travers), quer inscrever sua rosa vermelha na competição. Ela tem um nome: Rosa Miniver.

A rotina calma e quase fútil da vida dessas pessoas será brutalmente afetada quando a Inglaterra declara guerra ao Eixo.

Mais que um filme de guerra, Rosa de Esperança é um filme sobre a guerra. O conflito mundial é visto não pela ótica das batalhas no front, mas sim pelos efeitos causados nas pessoas que permaneceram em suas terras natais. Nenhum tiro é disparado. Não há sangue derramado. A narrativa não sai do território inglês. Vin, por exemplo, se alista na Força Aérea Real. Clem, por sua vez, integra uma tropa civil de resgate de soldados britânicos (e desempenha uma função importante no salvamento dos aliados em Dunquerque). A câmera, no entanto, não os segue. O espectador só sabe o destino de ambos após os eventos já terem ocorrido. Para Rosa de Esperança, o que interessa são as pequenas histórias: um concurso anual de flores, o romance entre uma jovem e um combatente de guerra, a retidão e a compostura com que os ingleses permanecem tocando suas vidas, mesmo diante do conturbado cenário mundial. Como diz o vigário no discurso final, logo após os primeiros bombardeios inimigos atingirem a pacata vila inglesa, a 2ª Guerra Mundial seria um embate a ser travado não apenas pelas armas dos militares. Antes disso, aquele era um litígio das pessoas comuns.

Essa opção por não explicitar a crueza da guerra, se é coerente com a proposta do filme, ironicamente o prejudica em certos aspectos. As tramas que se desenrolam em solo inglês são banais demais para despertar um interesse maior do espectador. Não há um grande conflito, uma tensão maior que nos transmita a sensação de que, àquela altura, um louco de bigode já começava a devastar o continente. Para não dizer que a guerra passa completamente ao largo daqueles personagens, o roteiro reserva dois momentos que mostram como o perigo está mais próximo do que se imagina: no primeiro, Kay recebe a visita inesperada de um alemão ferido em seu quintal. No segundo, o casal Miniver e seus filhos se escondem no porão da casa para se proteger das bombas arremessadas pelos aviões germânicos. Mesmo assim, nenhum dos dois episódios é forte o suficiente para nos passar uma impressão de aquela família está verdadeiramente em risco.

Rosa de Esperança foi dirigido por William Wyler. Na virada dos anos 50 para os 60, o pessoal da nouvelle vague olhava meio torto para ele, mas é fato que durante os anos 1930, Wyler foi o cara. Se diretores como Frank Capra e John Ford tiveram o mérito de impor seus nomes numa Hollywood dominada pelos chefes dos estúdios (Hitchcock ainda não tinha aportado nos EUA), foi Wyler que construiu a filmografia mais consistente da década. Dos vários filmes que assinou nessa época, O Conselheiro (Counsellor at Law, 1933), Infâmia (These Three, 1936) e Fogo de Outono (Dodsworth, 1936) são daquelas jóias raras que pairam acima do bem e do mal. Além desses, Wyler ainda encontrou tempo para dirigir Beco sem Saída (Dead End, 1937), Jezebel (idem, 1938) e O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights, 1939). Alguns cineastas não conseguem atingir tamanho nível de excelência durante uma vida de trabalho. Wyler o fez em menos de 10 anos.

O diretor tinha preferência por histórias clássicas, quase teatrais, e roteiros que acentuavam a psicologia dos personagens. Essa característica passava necessariamente pelos atores (Laurence Olivier sempre declarou que foi Wyler que o ensinou a atuar no cinema) e pela luminosidade. Nesse último quesito, sua parceria com o fotógrafo Gregg Toland foi fundamental. Através do recurso dramático da profundidade de campo, ambos explicitavam o modo de pensar e de agir de seus personagens. Com isso, ao passar a mensagem não pela palavra mas sim por artifícios visuais, próprios da linguagem cinematográfica, Wyler obrigava o público a ir junto com ele, a construir o seu próprio filme. Ver um filme de Wyler era um work-in-progress.

Essas virtudes podem ser vistas em Rosa de Esperança, ainda que em menor quantidade se comparadas com outros de seus filmes. A certa altura, Vin janta com a família. Ele é chamado ao telefone. Ele se desloca até o aparelho. Do outro lado da linha, seu superior o convoca para mais uma missão. Ele aparece no primeiro plano e a família no segundo. Ambos no mesmo quadro e em foco. A mise-en-scène sugere que nem mesmo uma guerra será capaz de separar os laços de Vin com aquele lar e aquelas pessoas. Impressiona também a sequência que Clem parte para o resgate dos solados em Dunquerque. É madrugada. O plano geral captura os navios em fila. A calmaria da água, quase estática, se contradiz com o perigo do momento. O trabalho de luz, não só disfarça a trucagem (as embarcações parecem ser de brinquedo), como intensifica a tensão. Num outro momento, Kay e Carol, nora e sogra, se abraçam na sala, enquanto aguardam Vin pegar sua mala e partir para mais uma missão aérea. A câmera se posiciona atrás das mulheres, enquanto que a luz acentua o topo da escada. Entre os dois espaços, um enorme vazio. A geografia da cena nos coloca na posição da mãe e da esposa, e nos transmite o receio que ambas sentem pelo futuro do jovem rapaz. Ele voltará com vida? Quando acabará esse abismo que nos separa? Se antes a guerra parecia algo distante, difuso, incapaz de atingir os meros mortais, naquele instante ela se transformava num evento eminentemente doméstico.

Wyler era alemão de nascimento. Sua nacionalidade, no entanto, não o impediu de ver a barbárie que Hitler estava prestes a cometer. Por isso mesmo, sempre foi um ferrenho defensor da entrada dos EUA na guerra – o que, aliás, acontecera seis meses antes do lançamento de Rosa de Esperança. Ele nunca escondeu que seu filme era uma propaganda aberta contra o nazismo. Para Wyler, o cinema tinha inclusive a obrigação de usar a força das imagens para transmitir a mensagem pacifista. No entanto, ainda que essa função da sétima arte possa ser das mais nobres, do ponto de vista narrativo a coisa nem sempre funciona. É o caso de Rosa de Esperança, em que o planfetarismo acima da conta prejudica o resultado final. Exatamente por isso, não funcionam como deveriam cenas como aquela em que Lady Belton reconhece a existência de uma rosa mais bela que a sua (o que significaria, em tese, uma pregação para a igualdade entre as classes) e a do discurso final do vigário, no interior de uma igreja em ruínas, conclamando o povo a se engajar na luta contra o nazismo. Em vez de se passar os mesmos recados de forma orgânica, no contexto da trama, o filme praticamente abre um parênteses na narrativa para transmitir sua declaração de princípios.

Ao contrário do que era habitual nos filmes de Wyler, o elenco de Rosa de Esperança tem problemas. Aos 38 anos (ela nascera em 1904), a inglesa Greer Garson parece nova demais para viver uma mãe de três filhos, ainda mais quando o mais velho deles já tem 19 anos. Apesar da cronologia não ser das mais favoráveis, Garson incorpora a protagonista com a retidão e a dignidade exigida para o papel. Sua expressão é simultaneamente jovial e maternal, uma interessante combinação de Meryl Streep com Marisa Tomei. Walter Pidgeon, por sua vez, constrói seu personagem da forma calma e relaxada de sempre. Pidgeon era daqueles atores sempre confiáveis, que transformavam o difícil em fácil, e que nem pareciam estar atuando. Já Richard Ney, o filho do casal, em seu filme de estréia, não foi das melhores escolhas. A falta de cancha que ele demonstra diante de pesos pesados como Garson e Pidgeon, prejudicam o envolvimento do público com a história. Quando Vin se alista na Força Aérea, por exemplo, nosso desinteresse pelo rapaz faz com que não compartilhemos a preocupação que surge no semblante dos pais. Considerando a importância que o filme dá às relações familiares, o erro de casting é grave. Theresa Wright, no segundo filme da sua carreira (no anterior, Pérfida [The Little Foxes, 1940], ela também fora dirigida por Wyler), faz uma interessante contraposição à Ney. Ela é claramente mais atriz do que seu parceiro. Completam o elenco coadjuvante os veteranos May Whitty e Henry Travers, que tiram leite de pedra de personagens negligenciados pelo roteiro.

Apesar dos seis Oscar que recebeu na cerimônia de 1942 e do enorme sucesso crítico e financeiro que teve nos EUA (David Selznick, por exemplo, gostou tanto do resultado que, dois anos depois, produziu um filme chamado Desde que Partiste [Since You Went Away, 1944], uma quase transposição da mesma história para o cotidiano americano), Rosa de Esperança não está entre os melhores trabalhos de Wyler (como sempre a Academia o premiou pelo filme errado). No entanto, as premiações e a aura de clássico que ostentou ao longo desses anos talvez se explique pelo fator timing. Tento me colocar na pele de um público que convivia com a concreta possibilidade de ver o mundo simplesmente ir pelos ares, e compreendo o impacto trazido pela fita. Vários anos depois, é inegável que o filme envelheceu em alguns aspectos. O que importa? Com todos os seus defeitos, Rosa de Esperança ainda exerce um estranho fascínio no espectador. Um fascínio quase que inexplicável, que só o cinema americano clássico consegue produzir.

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