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Críticas

Cineplayers

A rivalidade de ouro da Fórmula 1.

8,0

Para quem gosta de cinema, um filme a se recomendar nessa semana que marca os 20 anos da morte de um dos maiores ídolos do Brasil e do mundo é o documentário Senna (idem, 2009). Para quem deseja conhecer a história do esporte no qual Ayrton Senna se destacou e tornou popular no país do futebol, a melhor pedida de ficção é Rush - No Limite da Emoção (Rush, 2013), de Ron Howard.

A Fórmula 1 atual talvez seja o momento de maior equivalência entre os interesses dos pilotos e do público que acompanha o esporte. Isso porque, a partir da década de 90, o campeonato viveu um período em que o fator humano se tornou mero detalhe. A tecnologia, através da telemetria e outros componentes eletrônicos, tornaram a máquina muito mais importante que a perícia do homem atrás do volante (cheio de botões e comandos), levando a categoria a um período melancólico marcado pela longa supremacia de um piloto (Michael Schumacher) e algumas corridas em que não ocorria uma única ultrapassagem. Em meados da década passada, diversas mudanças vêm sendo adotadas e eficazes em aumentar o equilíbrio da categoria. Ainda assim, nada que se compare à emoção que marcou a Era de Ouro da F-1.

Muita coisa envolveu essa época. Afora o inigualável glamour de seus bastidores (artistas de Hollywood, astros do Rock e membros da realeza de diversas nações desfilavam pelos paddocks das escuderias), as pistas da Fórmula 1 eram marcadas pelo arrojo de seus pilotos e pelo alto grau de mortalidade da categoria. Foram 25 mortes nas décadas de 60 e 70, estatística essa que conferia um tempero trágico ao esporte e aos seus praticantes, homens que punham suas vidas em jogo dentro dos cockpits vulneráveis das máquinas cada vez mais potentes que “vestiam” e, fora deles, se tornavam figuras imortais. Dentre essas lendas, as figuras díspares de James Hunt e Niki Lauda, responsáveis pela disputa mais intensa do período e, por isso, mote principal de Rush.

De um lado, James Hunt, o loiro boa pinta, despachado, carismático, mulherengo, símbolo de uma das fotos mais icônicas dessa era: ainda suado após mais uma vitória, o inglês é clicado sentado em sua McLaren, levando um cigarro à boca com a mão direita, segurando uma lata de cerveja na mão esquerda e com uma gata sorridente vestida de dourado a tiracolo. Do outro temos Niki Lauda, um sujeito de cabelos escuros e cara de rato, cuja personalidade careta, ríspida e reservada evidenciavam sua fama de workaholic, conhecido por virar noites destrinchando o carro para buscar o melhor acerto - e por ter êxito nisso. O abismo entre eles se manifestava nas pistas: o ímpeto do britânico imprevisível contra a técnica e o calculismo do austríaco. E acompetição era acirradíssima. Emocionante! Mais do que isso, pode ser tratada como síntese da transição que marcou essa fase.

A total entrega aos prazeres da vida de James Hunt, jamais desassociada de sua carreira, lhe rendeu o título de "o último romântico da F-1". Não à toa: foi nessa década que o incansável Bernie Ecclestone assumiu a presidência da categoria e a transformou no que é hoje, uma empresa multibilionária que já não comporta a imagem pública irresponsável de um fumante alcoólatra como um de seus principais artistas. Isso ficou no passado, junto com o amadorismo da modesta Fórmula 1 de outrora. O homem do novo modelo do negócio teria de ser o perfeito contraponto disso; um piloto completo e exemplar, como Niki Lauda, também detentor de uma verve contestadora e politizada que faria de si um dos grandes defensores das mudanças que tornariam o automobilismo mundial mais seguro e profissional.

Toda essa rivalidade, todos esses aspectos, todas essas nuances estiveram reunidos no memorável campeonato de 1976 da Fórmula 1 e são primorosamente reconstituídos em Rush. Assim, a principal qualidade da obra dirigida por Ron Howard e roteirizada por Peter Morgan é estabelecer todo esse cenário ora imageticamente, por meio de uma reconstituição de época e atmosfera (direção de arte, figurino, penteados, toda parte técnica irretocável) capaz de emocionar todo e qualquer aficionado pelo esporte, ora em forma de diálogos e cenas de ação à altura do confronto que se instituiu dentro e fora das pistas. E não é só isso: os atores Chris Hemsworth, revelando um imenso e desconhecido carisma, e Daniel Brühl  carrancudo porém multidimensional, justificando as diversas indicações recebidas na temporada de premiações  evocam com perfeição a relação de admiração mútua que nasceu daquela grande disputa. Um elevou o nível do outro; um não teria sido tão bom sem o outro.

Hunt e Lauda representaram dois extremos de uma paixão avassaladora em comum. Assim como tantos outros pilotos, sentar no cockpit e sentir a adrenalina de guiar um carro a 300 km/h significava estar vivo e, no minuto seguinte, poderia significar sua morte  vista de perto por James no resgate heróico de Ronnie Petterson, e por Niki em seu terrível acidente. Essa é a linha tênue que tornava essas figuras tão potencialmente trágicas e fascinantes ao público (e aos mais cobiçados e cobiçosos olhares femininos, diga-se). Rush se vale disso, como também de tornar aquele embate único uma personificação da dualidade entre o que viria a se tornar a Fórmula 1 moderna, representada pelo piloto que assimilou um período de transição e levantou o trófeu de campeão outras duas vezes, e o homem que se manteve fiel a uma ideia, a um estilo de vida, a um tempo, e logo ficou ultrapassado e encerrou a carreira. E isso é feito de maneira brilhante, implícita, elíptica, ao contrário do expositivo diálogo que se dá bem no finzinho, com os adversários rasgando elogios um ao outro, o roteiro atirando no espectador o já óbvio caráter de homenagem do filme. Porém, mero senão dentro de um tributo envolvente e elegante.

Comentários (8)

Liliane Coelho | segunda-feira, 05 de Maio de 2014 - 09:55

Lindíssima crítica, belíssimo filme. Fui desconfiada vê-lo no cinema e saí maravilhada! Que obra de arte do cinema! Eu não conhecia bem a história dos dois, apenas por relatos do meu pai, um amante da F1; a partir do filme tive esse mesma impressão que você relatou na crítica: da era de outro desse esporte.

Rodrigo Torres | segunda-feira, 05 de Maio de 2014 - 16:56

Guilherme, a questão de ter ficado ultrapassado é quase voluntária. Para Hunt, o título foi o ápice, isso mesmo, e não muito mais importava. Ele estava muito mais preocupado em viver os prazeres de ser piloto (de apenas sentar no carro e pisar fundo no acelerador ao glamour e aos prazeres que a profissão possibilitava) do que em seguir uma carreira regrada, em ser um profissional de fato. E isso é muuuito legal! Ainda mais hoje, que o romantismo vem se perdendo cada vez mais (o que vale para o futebol, para o cinema e praticamente todas as posições públicas - a imagem hoje é muito mais valorizada e questionada, pro bem e pro mal).

nelson rios dias | segunda-feira, 29 de Setembro de 2014 - 22:18

Filme excelente, critica idem, e falando em f1 pelo menos esse ano temos uma rivalidade entre 2 pilotos Hamilton X Rosberg, claro bem distante dessa do filme e de outras, mas ao menos é algo, e acho q a rivalidade Prost X Senna tb daria um ótimo filme.

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