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Sambizanga

(Sambizanga, 1972)
8,1
Média
8 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Coragem, Maria. Coragem!

10,0

"Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba"

     Agostinho Neto

A cinematografia de Sarah Maldoror*, nascida em 1929, no sul da França, de pai guadalupense e mãe francesa, é fundamental para entender um cinema que se propõe construir a partir de um olhar que diversos intelectuais, como por exemplo Stuart Hall, definiram como do “outro”. Dedicou boa parte de sua carreira a propor um diálogo entre o papel da mulher e as ideias de “Negritude” de Léopold Senghor, León Damas, Frantz Fanon e principalmente com Aimé Césaire.

Sambizanga possivelmente seja o ápice desse encontro. Depois de haver coincidido no início dos anos 60 com Ousmane Sembène em seus estudos cinematográficos na Rússia e seis anos após sua experiência como assistente de direção de Gillo Pontecorvo em A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri,1965), Maldoror escreve um roteiro com a colaboração do escritor francês Maurice Pons e de Mario Pinto de Andrade seu companheiro e grande líder revolucionário angolano da MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).

Toda a bagagem e experiência que a artista havia acumulado durante esses anos se nota neste filme que mergulha adentro da família de Domingos, trabalhador rural de uma pedreira, e colaborador embrionário do grupo que tomaria rédeas da luta armada que levou Angola a sua independência.

Apesar dos acontecimentos girarem em torno da prisão desse homem, a grande força do filme está na presença de sua mulher, Maria, e sua incessante busca pela liberdade de seu companheiro. Na solidão de uma longa caminhada com o filho de “seu homem” nas costas, a personagem carrega consigo não só o embrião de sua família, mas o destino de uma Angola negra, mas ainda dominada por brancos.

A câmera de Maldoror percorre a exaustiva angústia de sua protagonista em tentar encontrar Domingos, essa busca por respostas se eleva a uma potência impressionante, quando finalmente chega a uma delegacia, percebe que ninguém irá lhe dizer absolutamente nada, então, em um ato de desespero, atira-se ao piso implorando por seu homem e é retirada em um plano sequência devastador por policiais.

Durante vários momentos do filme se percebe que o entorno social e cultural daquele espaço nada tem a ver com o político. O poder está instaurado nas mãos dos poucos homens brancos que aparecem, e essencialmente naqueles que nem chegam perto dos olhos incansáveis da protagonista. Tudo está desenhado para permanecer como está, todos que parecem cumprir as ordens conseguem algum tipo de privilégio que lhes permitem explorar o seu mesmo povo, e aqueles que desobedecem a ordem têm o seu destino na mão pesada do autoritarismo colonial.

Esse sistema que reproduz a lógica conservadora, denunciado anteriormente mesmo que em outros contextos por Tomás Gutiérrez Alea em A Morte de um Burocrata (La muerte de um burocrata,1966) e por Ousmane Sembène em Mandabi (1968), vai colocar Maria em uma espécie de gangorra entre delegacias e corporações policiais para poder encontrar seu marido. A partir desse momento, a montagem ganha muita força e se apodera da narrativa, em um jogo dialético de ausência/presença coloca o espectador no vazio desesperador desta mulher sem qualquer notícia relevante sobre o seu marido, e por outro lado, Domingos, em uma das cadeias, ao lado de outros presos prestes a conhecer o destino do homem negro que decide ser livre.

Diferentemente do narrado no brilhante Compasso de Espera (Antunes Filho, 1972), quando o personagem de Zózimo Bulbul escolhe ceder aos caprichos do branco para poder ser livre, em Sambizanga, o negro não está disposto a ceder nem um milímetro; a liberdade virá a qualquer custo, os angolanos da MPLA, em 4 de fevereiro de 1961, atacariam uma casa de reclusão militar em Luanda, no que seria o estopim da Guerra de Independência.

A resistência de Maria em forma de amor, que se transforma em alegoria para luta política vai servir como diálogo pleno com o cinema que Safi Faye vai propor anos depois com Mossane (1996). O grito repetido dessas mulheres negras africanas, abraçando uma das postulações estéticas mais importante da “Negritude”, servirá de eco para mulheres como Juliana de Temporada (André Novais Oliveira, 2018) traçarem o seu caminho nesse mundo que ainda lhes condena a permanecer em silêncio. 

*Esse texto é uma homenagem póstuma a Sarah Maldoror, falecida no último 13 de abril, aos 90 anos, vítima do Covid-19.

Comentários (3)

Josiel Oliveira | quarta-feira, 29 de Abril de 2020 - 20:30

Poxa... fiquei mega afim de conferir, mas não encontro legenda =(

Igor Guimarães Vasconcellos | quinta-feira, 30 de Abril de 2020 - 06:24

Pois é. A versão que rola por aí não tem uma qualidade muito boa, e já vem com legendas em inglês embutidas.
Boa parte do filme é em português mas de fato algumas coisinhas ficam faltando.
A versão que me motivou fazer o texto foi uma super remasterizada que tava rolando no site de um museu espanhol( Reina Sophia) que fez uma mostra online em homenagem a ela esses dias, só que os caras tiraram do ar os filmes. :(

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 30 de Abril de 2020 - 02:26

Que maravilha este filme. Fez parte da "XI Mostra de Cinema Africano Lusofonias Africanas" no ano de 2018. Aqui no estado do Ceará nas cidades de Fortaleza, Crato e Redenção. Com muito prazer fiz parte do comitê de organização da mostra. O Sambizanga era exatamente o filme de encerramento que usamos nas exibições das três cidades.

Alan Nina | sexta-feira, 01 de Maio de 2020 - 12:11

Igor, nunca tinha te lido, gostei bastante! Obrigado. Escreva mais, pfv :)

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