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Críticas

Cineplayers

A tensão cresce através da política, mas é a dramaturgia que se desenvolve sob a camada de thriller político.

8,0

Nas cenas passadas na Casa Branca, o presidente Lyndon Johnson fala sobre "Guerra à Pobreza", personagens reclamam que o dinheiro dos Estados Unidos é gasto com guerras em terras estrangeiras enquanto há americanos necessitados de ajuda no próprio solo nativo. Como Lincoln e outros filmes prestigiados sobre políticos, Selma parte do acontecimento histórico para comentar sobre os problemas estadounidenses do hoje. O que difere o filme da diretora Ava DuVernay das cinebiografias corriqueiras em época de Oscar, porém, é a forma de enxergar a figura e a influência de Martin Luther King no povo e na História, a observação tanto abrangente quanto particular dos dilemas do negro no país, um olhar que absorve as intrigas políticas para mostrar os efeitos na sociopolítica.

O princípio desse olhar parte da lógica visual construída por DuVernay para estabelecer alteridade entre os problemas em pequena e grande escala política. A mulher negra que é impedida de votar é capturada com um enquadramento lateral que instala uma claustrofobia sutil e sugere submissão sem autoridade aparente, um preconceito que persiste mesmo tornado ilegal pela constituição. Mais tarde, a diretora filma Luther King na mesma posição, mas em uma conversa com Lyndon Johnson. Manter a escala dos fatos importa tanto a DuVernay muito em função do fato que o preconceito atinge diferentes esferas sociais, o explícito nos desfavorecidos e o sutil no poderoso.

As manifestações públicas, sejam de ataque ou defesa dos direitos dos negros, pontuam os debates do campo político - e isolar King como principal orador da causa é uma ótima opção que o roteiro faz para mantê-lo como voz absoluta. Natural que Malcolm X surja na trama para ajudar com a retórica sem que a testemunhemos. A responsabilidade de líder, que se preocupa com os discípulos dos quais demanda ajuda e os consola quando eles sofrem as consequências, é singular. Qualquer manifestação paralela, forte ou não, é suprimida para elevar a figura de King, um exemplo da concisão narrativa do filme - e a montagem eficaz tem papel fundamental nisso.

A tensão racial com o presidente, aliás, é precisa na legitimação de Luther King como líder de massas. A luta ideológica pelos direitos é construída com embates, e, além de contra injustiças coletivas, o líder deve se impor diante das personificações desses interesses. O que o torna poderoso é entender que ele próprio também representa suas ideias.

Não por acaso, os problemas pessoais do protagonista são resolvidos no particular. Nesse contexto, sua esposa tem um papel importante ao servir de bússola familiar, na época quando as lutas coletivas sobrepunham às relações pessoais de King (e a diretora deixa clara a posição forte da mulher nas decisões do processo). As ótimas interações entre David Oyelowo e Carmen Ejogo revelam tanto o preço pago pelas prioridades políticas (a cena da traição) quanto traços pessoais de King - como na prisão, quando Coretta diz que "não é que precise da ajuda de Malcolm X", sugerindo não só o ego existente no homem como a obsessão presente na lógica do discurso, do homem maior que o outro, do ícone maior que o outro.

Expor a personalidade de Luther King ajuda a compreensão acerca da performance do líder, mas quando seu imaginário é realçado fora do público, como na ligação com a cantora, se diz mais sobre a dificuldade do pastor em lidar pontualmente com a importância de sua imagem que sobre um exercício grandiloquente de poder. Um dos cuidados que DuVernay toma para manter sobriedade no retrato biográfico é tornar o biografado falível, mas nunca questionando a dignidade de sua influência. A ascensão de homem a ícone gera necessidades grandes, e o roteiro constroi um protagonista ciente disso.

Alterar a realidade social demanda planejamento, principalmente em um cenário cujo peso histórico ainda é denso, e em Selma o protagonista triunfa justamente por entender os protestos como encenações, os lugares como palcos. A cena mais forte do longa, que torna literal o confronto racial na frente do parlamento, é pensada pelos revolucionários devido a seu poder simbólico, assim como o próprio local de partida da caminhada. A tensão cresce através dos ideais políticos contrastantes, mas é a dramaturgia que se desenvolve sob a camada de thriller político.

Os letreiros de informes do FBI dão a gravidade necessária para a sensação coletiva de que a História é construída imediatamente, vivida por personagens conscientes dessa importância. O povo marcha clamando por um novo mundo no horizonte, mas sofre ataques, como o da ponte, que ecoam a escravidão no país. Essa impotência diante do peso histórico é tanto opressora (os carros cheios, os locais vazios, os habitantes preconceituosos de Selma) quanto motor (mortes do movimento aumentam a angústia e desejo de mudança na população) para King, e é na visão ampla de como conduzir massas em momentos de calamidade que o líder impulsiona a mudança.

Na tentativa de vencer o governador do Alabama na argumentação, o presidente Johnson usa as mesmas palavras de King. Não há vitória maior para um homem público que sua performance ser passada adiante, auxiliando ideias através de palavras, seja por indivíduos comuns ou homens da retórica.

Comentários (4)

Lucas Souza | quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2015 - 11:58

Poxa parece que o filme é bom mesmo hein e totalmente ignorado pelo Oscar...

Robson Nakazato | quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2015 - 12:56

O motivo do esnobe do Oscar foi justamente a Academia estar enjoado do tema do racismo contra os negros. Vem indicando desde: 2011 com Historias Cruzadas, 2012 com Django Livre e Lincoln, e premiado 12 Anos de Escravidão na qual acham que foi o ápice.


Mas o que tem acontecido recentemente nos EUA e mesmo com Obama no poder, os americanos ainda não aprenderam a se respeitar. Que bom Oscar indique esses filmes reflexivos embora tenha sido muito ignorado e insultado.

Pedro H. S. Lubschinski | quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2015 - 14:55

Ótima surpresa esse. Dos indicados ao Oscar era o que menos tinha expectativas e me surpreendeu muito. Ótima produção e um desempenho digno de aplausos do Oyelowo.

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