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Críticas

Cineplayers

Rotatividade dos sentidos.

8,0
À primeira vista, Selvagem te leva diretamente para Um Estranho no Lago, obra-prima de Alain Guiraudie que chacoalhou a França há 5 anos atrás. Aos poucos, a casca do longa vai revelando um produto que até bebe no público-alvo daquele, mas que se desenvolve de maneira diversa. O cineasta Camille Vidal-Naquet tem dois temas a desenvolver com um cunho social: a prostituição masculina e o vício em drogas. A reboque, vem também temas intrínsecos ao ser humano em geral, como a depressão, o deslocamento, o não-pertencimento, tudo apresentado com clareza de ideias e competência. Certa poesia também entra no contexto e talvez seja esse aspecto a incomodar no âmbito final, que poderia sugerir uma possível glamourização, ainda que gráfica, a uma escolha de vida duvidosa.

O filme tem um roteiro que delineia muito bem seu protagonista. Escrito pelo diretor, o filme desenha à perfeição seu personagem sem nome. O rapaz vivido por Félix Maritaud é um garoto de programa que mora nas ruas, dorme na sarjeta, é viciado em crack, não tem amigos ou envolvimento amoroso, e está fisicamente doente, provavelmente causado por sua vida de excessos. Cada detalhe de sua personalidade, tais como a sinceridade, a carência, a solidariedade, vão sendo não apenas revelados ao público, como também realçados e confirmados, tais como os de outro michê como ele, que aos poucos entendemos a complexidade da relação que nutre com o protagonista, em jogo de atração e repulsa constante. O filme já valeria pelo belo retrato da cena barra pesada francesa, das ruas e da profunda solidão que envolve esses rapazes, assim como a violência a espreita, e a gama de clientes com tantas diferenças entre si, alguns ganhando destaque na vida desses homens à deriva.

A narrativa segue nervosa por entre as ruas, apartamentos, vielas e latrinas, consultórios médicos (verdadeiros e falsos), e um grande matagal. Tudo é urgente, tudo é reflexo dessas vidas errantes. Nosso protagonista sem nome é o sujeito a ser seguido, e a partir dele criar um mosaico sobre o péssimo estado emocional onde aquelas pessoas se encontram, mesmo que as observamos mais rapidamente (como o homem gordo que estende a mão para a paixão do 'herói'); poucos ali tem nome, mas o filme compensa isso dando relevo a cada um. Colocando todos eles num espiral de acontecimentos regidos pelo elemento central, nosso olhar consegue ir fundo nas radiografias que Camille dá vazão, independente do protagonista. 

O filme mostra com uma certa saturação a ausência de limites daquela estrutura de vida. Sua fluência e pulsação vai na ordem do que o aquele homem quer, e recebe. Com uma melancolia que não se percebe facilmente, por conta da energia que exala dos corpos, do sexo e da movimentação dos mesmos, sem julgar ou comprometer as vidas ali focadas. Sem o brilhantismo e a precisão do Corpo Elétrico de Marcelo Caetano, mas exalando nas entrelinhas seus sonhos e desejos, tá no título a definição de muito mais do que o protagonista consegue abarcar. Selvagem não apenas é aqueles jovens à margem, mas suas escolhas e seus caminhos. A alta rotatividade de impressões e mudanças de rota simbolizam a urgência também das próprias decisões, que precisam ser impressas agora. Porque em questão de minutos, o animal interno dará nova ordem e o sonho atual dará vez ao próximo. E ao próximo. E ao próximo... 

Filme visto na Mostra de Cinema de São Paulo

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