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Críticas

Cineplayers

A (autos)sátira de Michael Bay ao sonho americano.

7,5

Foi com a melhor das intenções que James Truslow Adams cunhou o termo American Dream, apenas dois anos após a Grande Depressão. Também autor da frase “Há obviamente duas educações: uma deveria nos ensinar como ganhar a vida, outra como viver”, Adams jamais poderia imaginar que sua otimista projeção de ordem social e igualdade de oportunidades para todos os residentes dos Estados Unidos seria distorcida e transformada numa das principais ferramentas filosóficas do capitalismo, sistema econômico que tão bem subverte a utópica realidade proposta no livro The Epic of America. Pois é a partir dessa percepção que Michael Bay desenvolve Sem Dor, Sem Ganho (Pain & Gain, 2013), um bem-vindo e surpreendente filme na carreira recente do diretor justamente por ser dotado de uma linha crítica bem definida e desenvolvida.

Tomemos, por exemplo, sua cena de abertura, em que o personal trainer Daniel Lugo (Mark Wahlberg), em uma assustadora sessão de abdominais pendurado em um paredão de concreto, grita “Eu sou forte! Eu sou grande! Eu sou gostoso!”. Sim, o sujeito é vaidoso, egocêntrico e ambicioso, características que entram em conflito e afloram diante da ostentação do aluno Victor Kershaw (Tony Shalboub, excelente), um judeu de ascendência colombiana, viciado em poder e de natureza extremamente vulgar, cuja riqueza e negócios têm procedência duvidosa. Assim, o que a princípio surge como um libelo da natureza caótica do cinema de Bay, inclinado ao emprego indiscriminado de caricaturas, comprova sua função narrativa à medida em que tudo ali se apresenta como produto da nociva competitividade que a busca pelo sonho americano desperta nas pessoas - e não poderia haver melhor exemplo para o lixo que essa ideia produz do que uma constrangedora palestra motivacional ministrada pelo coreano tresloucado Ken Jeong.

O estilo excessivo de Bay também se apresenta quase sempre muito funcional, com closes em slow motion destacando a estrela de Davi no peito de Kershaw e a narração em off enfatizando a hipocrisia em seu protagonista: ao passo que o mesmo se rebela contra os economicamente privilegiados, Lugo despreza aqueles diferentes de si (pessoas que não valorizam o que há de mais valor em cada um, seu corpo, enquanto a câmera passeia por senhoras gordas), o que resume bem o comportamento egoísta da sociedade como um todo. Não à toa, Lugo irá convocar dois bodybuilders para auxiliá-lo no sequestro de Kershaw: o negro Adrian Doorbal (Anthony Mackie) e o ex-presidiário (e ex-viciado! E ex-crente!) Paul Doyle (Dwayne Johnson), opção inteligentíssima em sua polivalência, uma vez que não apenas reitera que os Estados Unidos não é uma terra em que as minorias encontram igualdade de oportunidades, assim como, ao reforçar o estereótipo do bombado idiota, mostra que a interpretação de Lugo para outro conceito ("mente sã em corpo são") está equivocada, ou, numa análise mais abstrativa, como costuma ser limitada a perspectiva de quem defende a superioridade de um grupo, uma raça, uma religião ou coisa que valha.

No cerne da questão, o da competitividade entre grupos distintos, os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely desenvolvem com muita precisão o único personagem capaz de ser financeiramente bem-sucedido sem ferir sua integridade moral, como previa Adams ao conceber o conceito de American Dream. Este é Ed DuBois III (todos sabemos que a influência, principalmente quando sustentada por um belo nome de família, abre portas no mundo capitalista), interpretado com sobriedade por Ed Harris, um americano típico caucasiano (e, por isso, isento de qualquer discriminação) cuja profissão de família é investigar e prender pessoas que cometem delitos. Ou seja, esse verdadeiro patriota consegue pôr em prática a ideia do sonho americano detendo aqueles que burlam a essência do conceito para acumular riquezas e ostentá-la, que é como o capitalismo estimula o sonho americano no mundo contemporâneo; ou seja, de um jeito ou de outro, ele vive desse sistema, o que é fina ironia.

Aliás, quando DuBois começa a investigar os três picaretas e os planos destes começam a dar errado é que o filme fica mais tragicômico e a peculiar grosseria de Michael Bay explode. Enquanto Lugo usa seu dinheiro com certa moderação, mas tem a ideia imbecil de adotar a casa do cara que extorquia como nova moradia, Adrian pagaria bem caro comprando um novo lar, realizando o sonho de casar-se com uma gordinha e arcando com um tratamento para impotência provocada pelo uso excessivo de anabolizantes, enquanto Paul se deixa extorquir por uma loira (supostamente) burra e cheira até o último centavo (momentos em que The Rock brilha). E se a falta de sensibilidade do cineasta atinge o ápice quando o mesmo lembra que aquela trama surreal ainda se trata de uma história baseada em fatos (imagine os familiares das vítimas assistindo à cena do churrasco!), se torna instigante perceber que Bay tanto parodia a parcela mais óbvia de seu público potencial, quanto, conscientemente ou não, satiriza a si mesmo, uma vez que, assim como seu trio protagonista, sua filmografia é um reflexo de seu inequívoco fascínio por máquinas esportivas e mulheres muito belas e pouco inteligentes.

Sem Dor, Sem Ganho se assemelha bastante a Selvagens (Savages, 2012) em sua crítica à deturpação de ideais e aos modos escusos de se ganhar a vida nos Estados Unidos, porém se mostra bem mais coeso e honesto por não estabelecer uma confusa dicotomia entre bandido bom e bandido mau. Mais do que isso, é o filme em que Michael Bay melhor consegue utilizar a esquizofrenia de seu cinema (figuraça, ele encontra um jeito de explodir um carro) em prol da narrativa e de uma análise precisa de seu tempo. E o diretor também é eventualmente corajoso em, indiretamente, se assumir como um privilegiado dentro do "american way of life" - e pensar que o filho grato do sonho americano pode tê-lo assumido de maneira inconsciente, cometendo uma gafe do tamanho de um longa-metragem, torna tudo ainda mais sincero e deliciosamente irônico.

Comentários (14)

Patrick Corrêa | sábado, 31 de Agosto de 2013 - 23:23

No fim das contas, o filme vale a pena mesmo.
Ótima crítica.

Felipe Caran Deconto | domingo, 08 de Setembro de 2013 - 02:06

Este seria um típico filme que eu não assistiria, porém com a ótima crítica do Rodrigo fui vê-lo e me surpreendi. A nota é condizente com o filme, as críticas a sociedade são ácidas e divertidas. Além disso saber que essa história é real, é o mais cômico do longa- metragem.
Na minha modesta opinião, o melhor trabalho de Bay até hoje.

Daniel Oliveira | segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013 - 01:30

Achei o filme bem divertido, e a crítica do Rodrigo ótima.

Compartilho a que escrevi em meu blog pessoal ;)
http://cinefilosantista.blogspot.com.br/2013/12/critica-sem-dor-sem-ganho.html

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