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Críticas

Cineplayers

A substância do autor.

9,0
Eles fogem, graciosos, quase como se levados por um “impulso invisível” de movimento da câmera proliferativa, e enternecem para além da linguagem primordial do verbo: independente do que se profira sobre o último Todd Haynes, marginal e centralizado ao mesmo tempo, está o magnetismo dúplice que brinca com o próprio título do filme. O garoto em busca do pai e que se torna surdo ao ser atingido por um raio, e a garotinha, surda de nascença, os olhos vibrando e aquosos na sede por um lugar de pertença do mundo. Ei-lo, então, decomposto: wonder-struck – por enquanto, apenas verbo “passivo”, ou um estado; em seguida provaremos porque também filme –: ser atingido (to be struck) por um maravilhamento (wonder), deslumbramento, algo de sublime, evento de potência radiante. E o filme, como se brincasse com a sensação de sobredose de beleza que Argento havia manipulado com maestria em Síndrome de Stendhal (La Sindrome di Stendhal, 1996): Sem Fôlego (Wonderstruck, 2017). Ambos atingidos, uma pelas cintilações constelatórias das centenas de janelas de Nova York, o outro pelo raio que o impele à jornada do herói – porque este é também um filme hiper-classicista e mítico, graças à autoria inabalável de Haynes –, nasce ainda uma terceira substância.

Porque aqui, por algum motivo que se espera permaneça misterioso, o autor entrega sua quintessência. Eriçada por algum atrito com a natureza estimulante e reluzente dos museus, do tempo passado e dessa mesma Nova York que se introduz pelo simples enquadramento fluido, desdobra-se a estética já renomadamente (não precisamos repeti-lo) apurada num estado paradoxal, ou minimamente ambíguo: enquanto a raiz da trama que arraiga o conto de pesadelo infantil de não-pertença a repuxa para uma melancolia que desde Carol (idem, 2015) enfeitiçava e amolecia qualquer conexão simbiótica entre os olhos e os afetos, o ponto de dobradura que estala a narrativa e a faz crescer num ritmo dramático, com a intensidade inquebrantável de uma corrente elétrica, articulada e desestabilizadora das seguranças classicistas – este aclive que nos empurra numa tormenta melodramática como só Haynes consegue recriar desde Sirk, Fassbinder e Minnelli, não é menos que o grande artifício que o propicia jogar com aquele que é principal elemento do cinema desde que este se assumiu também possível sem imagens visuais (Guy Debord e João César Monteiro o provam bem): o Tempo.

Entrelaçado e indissociável da nostalgia de penteados La Garçonne dos anos 20 e das batidas Funk e R&B que incendiavam as avenidas do coração americano, com suas bichas, moradores de rua, black powers e corpos negros encharcados de travessuras com hidrantes, a bipartição temporal de Haynes, se a princípio parecia apenas ansiar pelo toque sutil, e ainda assim carregado, de um mesmo sentimento que se cristaliza num objeto que é, por si só, a tentativa de estancar uma memorabilia no tempo – o álbum que fusiona as crianças –, faz com que advenha uma terceira temporalidade, uma mista e que pode muito bem ressignificar todo o jogo dual do filme ao torná-lo uma absurda montagem paralela, e não mais simplesmente dois tempos separados, um presente e um passado que, colocados alternadamente, dão a impressão de uma narrativa cujo único alcance é o da união simbólica.

Explica-se: se a virada ontológica pós-estruturalista da filosofia viria a sugerir, agora com ênfase voraz, que o presente e o passado são tempos coexistentes, porque um instante presente só pode passar na medida em que algo dele se despedaça “para trás” e um outro algo permanece inteiro, “presente”, aqui, ainda que fugidio, inalcançável, todo esse movimento duplo acontecendo ao mesmo tempo (ou seja, toda a ideia de Tempo enquanto uma sucessão encadeada e em eterno aperfeiçoamento, agora, e é o caso aqui, vem a parecer uma confusão infantil), qualquer presente, seja ele simulado ou não, está intimamente ligado a todo o seu passado, que a ele retorna, no caso do Cinema, só para que as narrativas se recontem de maneira quase igual, mas sempre, e isto é impreterível, ligeiramente diferente. E se se pode lançar a pergunta sobre qual elemento torna Haynes de fato um rompante de singularidade, a brincadeira em repetir o personagem de Julianne Moore murcha em inocência e acusa a metalinguagem que o logra: contar uma história n’outro tempo “falando” do Tempo ele mesmo.

Retorna, então, esse classicismo das histórias impensáveis, das tramas extra-ordinárias, decantado pela experiência cultural viva e transpirante das ruas de guetos e backstages de teatro – poderia o autor estar numa colmeia de polpa mais vistosa? – e transformado pelos malabares temporais que culminam num terceiro ato que desperta, injeta com vida e agiganta todo o percurso inicial entrançado pela surdez enquanto optativa estética iconoclasta e maliciosa. O encerramento de Sem Fôlego assemelha-se à cartada particular do grande jogador: arranca o término num fôlego recuperado que imobiliza, mas que sobretudo atesta o gênio ensimesmado, recoberto, disfarçado, artificial, que é ter de blefar até que não haja mais nada para ser jogado, contado ou contemplado – neste caso, o há: apenas as estrelas.

Comentários (1)

Douglas Rodrigues de Oliveira | terça-feira, 23 de Janeiro de 2018 - 18:50

Belíssimo, Felipe, não espero nada menos que pérolas de Vc.

Eis o principal esnobado do Oscar, junto de Z, de Gray. Simplesmente não entendi o desprezo das premiações com Wonderstruck - e Z, lógico.

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