Uma lavra de belos documentários pode surgir de tempos em tempos e o Brasil especificamente nunca deixou de produzi-los, com importâncias múltiplas, temas potentes e retratos maduros. A classificação começa a fazer diferença quando tentamos achar filmes que revelem realidades pouco exploradas, jogando luz sobre lugares pouco debatidos. A terceira categoria é ainda mais afunilada: quantos materiais documentais vimos ultimamente sobre um assunto abafado na nossa história e que também se transforma em peça cinematográfica relevante? Wolney Oliveira comete essa delicadeza de nos ofertar seu olhar sobre o próximo, esse próximo pouco assistido nos nossos livros acadêmicos, e o diretor de Os Últimos Cangaceiros invade o sertão em busca de justiça histórica.

Com experiência e contato que já vão para os 15 anos e contando com algumas obras prévias sobre seus heróis da vez, Wolney rejuvenesce o gênero e a si mesmo com uma abordagem pop com pegada de fácil assimilação em um pedaço injustamente esquecido e que exige reparação. As gerações atuais terão em Soldados da Borracha uma fonte de conhecimento com uma embalagem sedutora para um exercício de rememoração dos mais importantes porque resgata horrores do nosso passado que não podem ser desfeitos, e por isso mesmo jamais deverão ser esquecidos. E essa é uma característica do próprio realizador, resgatar os homens e mulheres que não foram devidamente reconhecidos e reconectar suas histórias à história, que lhes é de direito.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA enfrentaram uma crise pela falta de matéria prima em diversos setores, e na questão da borracha ninguém melhor que o Brasil para ajudá-los. Com isso, os governos se uniram em um acordo que só beneficiou a eles, ao recrutar jovens brasileiros com promessas de aposentadoria militar para seringar na Amazônia - promessas essas que nunca viraram realidade. Além do imbróglio envolvendo essa dívida com a sociedade como um todo e com essas pessoas especificamente, toda sorte de desmandos foram cometidos à época, como mortes por malária devido à manutenção precária de vacinação, regime de escravidão, precarização trabalhista e, ao perceber que suas promessas não enganavam mais ninguém, a população passou então a não se voluntariar, sendo enfim recrutada independente da sua vontade, ou seja, sequestro e cárcere. 

Wolney fez uma rigorosa pesquisa que se transformou em material tão poderoso e abrangente que seus planos incluem que o tema continue se desdobrando, futuramente em formato de série. O extenso trabalho inclui pesquisas com os sobreviventes borracheiros em depoimentos absolutamente impressionantes, indo da mais absoluta tragédia e horror até a passagens inesperadamente cômicas de suas experiências, um material humano vasto e envolvente que impressiona pela lucidez e pelo nível de degradação que seres humanos podem submeter a outros. Vários personagens do filme encantam e impactam, mas poucos serão mais pungentes que ouvir um dos seringueiros contar sobre o encontro com o cadáver do pai quando ele tinha apenas 10 anos, que o obrigou a cavar uma sepultura em chão batido.

De montagem meticulosa em uma estrutura narrativa que subdividiu o filme em passagens capitulares nos inúmeros segmentos que constituiram essa epopeia trágica, e bela reconfiguração de material pictórico através de grafismos animados, registros de qualidade inegável e valor histórico imenso que no se transformam em base visual para o filme ganhar potência imagética, 'Soldados da Borracha' tanto consegue ser um registro da corrupção já sabida e premente no país há 80 anos, quanto ser uma peça de cinema das mais ágeis vistas no Cine Ceará esse ano.

* Visto no 29º Cine Ceará, 2019