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Críticas

Cineplayers

Woody Allen mais uma vez mistura mitologia grega e Dostoiésvski para falar da cegueira dos homens diante das forças do destino.

7,0

Em seu terceiro filme produzido na Inglaterra, o conhecido diretor nova-iorquino lida novamente com as agruras da ambição humana discorrendo sobre as forças do destino que, segundo ele, sempre se impõem na correção dos delitos, agindo para o restabelecimento do equilíbrio das forças que movem o universo.

Utilizando a prosaica história de dois irmãos, Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell), que levados por vícios e soberba, se vêem envolvidos em um jogo cujas conseqüências talvez eles não consigam bancar. Terry trabalha numa oficina mecânica e mantém um romance estável com Kate (Sally Hawkins). Ele alimenta pequenos sonhos, como montar uma loja de artigos esportivos ou comprar uma casa para viver com sua namorada. E percebemos desde o início que algo há de muito errado com sua sorte (ou seria azar?): viciado em jogos, ele aposta na loteria e em corridas de cães. Mas tudo no limite de seu bolso, até o momento em que conhece a sensação de arriscar-se em jogos de pôquer nos quais as quantias são bem maiores do que ele imaginava. E os riscos também.

Enquanto isso, seu irmão Ian possui sonhos bem mais altos, envolvendo viagens, carros de luxo e grandes investimentos, pensando em viver uma vida tão cheia de histórias e aventuras quanto à de seu tio Howard (Tom Wilkinson, mais conhecido como o engenhoso doutor Howard Mierzwiak, de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças), um verdadeiro mito familiar de sucesso, citado diversas vezes antes que seu personagem surja na história para alterar seus rumos.

Interessante é perceber a inocência feliz dos irmãos ao início do filme, quando tudo que eles realmente desejam é comprar um barco de segunda mão, unindo as pequenas economias de ambos e ainda assim parcelando a dívida. Ironicamente batizado como O Sonho de Cassandra, este barco será o símbolo da mudança que ocorrerá em seus destinos. O nome escolhido de maneira aleatória traz consigo a carga simbólica do mito grego de Cassandra, a mulher que recebeu o dom de prever o futuro ao mesmo tempo em que é castigada com infelicidade de que ninguém jamais acreditaria em seus presságios.

Assim é que se desenrola a trama, a partir do fato de que os irmãos assumem o compromisso de comprar o barco mesmo sem poder, iniciando o efeito bola de neve, tomando coragem a partir disso de assumir riscos com os quais eles não podem honrar. A ruína de Terry serão os jogos. Já a de Ian será Angela (Hayley Atwell), uma bela e ambiciosa atriz em início de carreira que incitará nele o vigor para ousar, na busca por algo maior do que ajudar o pai (John Benfield) a tocar o restaurante da família. Aqui vai uma dica: na cena em que Ian conhece Angela, perceba o artifício utilizado por Allen para ressaltar o charme irresistível da personagem. Inclusive, até esse momento o filme corre numa atmosfera engraçada, e talvez esse tenha sido só mais um gracejo do diretor, um clichê empregado pra nos fazer rir.

Aproveito também pra comentar sobre o ritmo inicial do filme, que não somente nas ações, mas até nos diálogos me pareceu rápido demais, e ao final você quase nem consegue lembrar que Ian teve um caso com a atendente do restaurante do pai, ou mesmo que Terry tivesse bom humor. As cenas iniciais parecem maquinais e corridas, apertando o tempo para que ele possa se alongar necessariamente no final.

Bem, voltando ao enredo, tio Howard aparece no exato momento em que ambos estão com as canelas enfiadas na lama, já que Terry está devendo dinheiro para agiotas e Ian quer continuar impressionando Angela sem precisar pegar emprestados os carros na oficina do irmão. Mas pela cara que ele apresenta na chegada dá pra sacar que sua vida não anda tão espetacular quanto eles supõem. E depois de tanto ajudar e presentear a eles e sua família, chega a hora em que é tio Howard quem precisa de um grande favor. E é aqui que Woody Allen começa a jogar com conceitos morais como culpa, arrependimento e cobiça, ingredientes que também foram a base de Ponto Final, o primeiro filme do diretor encenado na cidade Londres.

Um dos pontos fortes de O Sonho de Cassandra é o entrosamento entre McGregor e Ferrel que demonstram todas as nuances da convivência entre irmãos como o companheirismo, a cumplicidade em pequenos e grandes delitos e a relação de forças e talentos que são obrigatoriamente presentes como conflitos nestas relações, em que ambos são frutos de uma mesma criação sendo ainda muito diferentes entre si. Aliás, McGregor sustenta uma atuação condizente com trabalhos anteriores enquanto Ferrell deixa de lado a canastrice de personagens como Sonny Crockett de Miami Vice e demonstra boa transição entre a astúcia inocente inicial até a depressão da culpa que o carrega para o final e surpreende, sem dúvida.

Seguindo num ritmo bem mais natural que a história de Ponto Final, talvez justamente pelo conjunto das atuações, O Sonho de Cassandra se concretiza com talento. Mas os sonhos de seus personagens não. Apesar de não agregar nenhuma novidade a seu cinema este é mais um bom filme na filmografia de Allen, que agradará aos fãs pela qualidade de um trabalho bem feito e de uma história bem contada.

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