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Críticas

Cineplayers

A tartaruga e a vida.

8,0
A Tartaruga Vermelha (La Tortue Rouge, 2016), nova co-produção do Estúdio Ghibli e parte da seleção do último festival de Cannes, é o que podemos definir como o cruzamento de Robinson Crusoé com o universo encantado de Hans Christian Andersen. A história de um náufrago tentando fugir de uma ilha deserta e lutando contra a natureza para sobreviver logo se converge com uma inesperada fábula que surge a partir do ponto em que descobrimos que o que o impede de escapar são as investidas de uma gigantesca tartaruga avermelhada – criatura enigmática e inteligente que por algum motivo não permite o escape daquele pobre coitado e afunda todas as jangadas que ele constrói.

A partir de um embate tão simples, A Tartaruga Vermelha vai se desdobrar em centenas de filmes em um, vai englobar no microssomo de seu universo uma variação de temas infindáveis e remontar, à seu modo, a própria vida. Através de uma técnica anacrônica, o que inclui o uso da rotoscopia, o filme também mergulha num passadismo cinematográfico ao optar pela ausência de diálogos e erigir um autêntico monumento mudo em pleno século XXI, onde as animações geralmente são bombardeadas de diálogos incessantes dublados pela voz de personalidades famosas. Como num livro infantil, sua narrativa sobrevive quase que somente de imagens autossuficientes, tão bem elaboradas e coloridas que por si só estimulam reflexões e interpretações diversas sem revelar muita coisa. 

O recurso é sábio e muito eficiente, pois a história da tartaruga vermelha vai se enveredar por um caminho inesperado e a partir disso o filme se dividirá em muitas conclusões e interpretações diferentes, a começar pelo próprio animal-título e sua curiosa presença/função dentro da narrativa. A princípio, o que podemos deduzir disso tudo é que se trata de uma metáfora sobre a própria existência, o cruel processo de adaptação pelo qual passamos durante o amadurecimento, as escolhas que podemos tomar e aquelas que estão além do nosso alcance e que nos circundam e direcionam a caminhos nem sempre previstos ou sequer sonhados – o que se traduz no embate do náufrago contra as adversidades do ambiente selvagem desconhecido (sendo a ilha um personagem à parte, temperamental em suas condições adversas, tempestades, tsunamis, armadilhas, calor abrasante, escassez de recursos e alimentos etc.), seu desbravamento pela chance de trilhar o próprio destino ansiado de fuga. Mas quando ele parece superar os obstáculos, a chegada da tartaruga mítica surge como uma barreira além da compreensão racional, um impedimento que o força a voltar ao seu destino indesejado e lhe garante uma eterna prisão naquele ciclo infindável de tentativas de fuga – ou os motivos de força maior que nem sempre entendemos, mas que muitas vezes nos direcionam por certos caminhos ao longo da vida. 

Em um segundo momento, encerrado o “primeiro ato” sobre o náufrago e o embate homem vs. natureza, A Tartaruga Vermelha se transforma numa alegoria sobre a jornada da vida – sendo o animal costumeiramente associado à longevidade, sabedoria, persistência, paciência e capacidade de adaptação. Uma vez aceito o inevitável destino, resta seguir por ele e então filme tece com muita melancolia e delicadeza o momento de ascensão – o amor, a família – e também o momento da gradual queda, o minguante do ir perdendo aos poucos a saúde, as pessoas ao redor, as perspectivas, os sonhos, até a aproximação injusta e cruel da finitude. 

Toda a animação de A Tartaruga Vermelha é genial, uma ambientação perfeita e feita de detalhes que aos poucos nos oferecem uma noção de um mundo de exuberâncias naturais que existem fora do terreno da ficção, mas que nem sempre são tão bem assimilados por nós quando fora do enfoque de uma tela de cinema: a beleza de uma tempestade molhando a floresta, o som das ondas, as cores e contornos do ambiente quando inundados pela luz do sol, o vento chacoalhando as folhas – tudo é corriqueiro, mas dentro desse filme é sempre uma nova descoberta, como se de repente descobríssemos o pôr do sol como algo inédito e exuberantemente poderoso. Junto com a delicada trilha sonora do compositor Laurent Perez Del Mar, o diretor e animador Michael Dudok de Wit se empenha tanto na construção desse microssomo da vida, que tudo parece muito natural mesmo que por vezes beire o absurdo, criando assim um vínculo real e forte entre os personagens, o ambiente e o espectador, que em dado momento compartilham de um mesmo mundo e evoluem juntos dentro desse filme que também pode ser encarado como um reflexo da própria existência.  

Comentários (1)

Lucas Moreira | terça-feira, 21 de Fevereiro de 2017 - 13:56

Bela Animação.

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