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Críticas

Cineplayers

Mitologia, homem e passado.

8,0
Ouço (leio) da crítica até agora produzida sobre Teobaldo Morto, Romeu Exilado (2015) que este é um filme irregular. Dois motivos aparentemente semelhantes se enunciam: de um lado, a irregularidade do ritmo, posto que sua segunda parte apresentaria muito mais fôlego que a primeira; de um outro, que algumas de suas cenas iniciais poderiam (deveriam) ter sido cortadas – ou seja, há um quê de desnecessário a elas –, ou minimamente reduzidas em extensão. Em duas de suas centenas de facetas, o tempo incomoda. Ritmo (sucessão, movimento) e duração. Decerto, também outras centenas de filmes não são completamente palatáveis por quesitos como estes, e a crítica pode apontar seus deslizes à maneira que a sensação da pouca organicidade a permita perceber essas imagens. Mas o que se acredita perturbar o argumento, aqui, é o termo da autoria, disso que se convencionou identificar como ''cinema de autor'', e que incide diretamente, para além da tentativa dos cineastas de arranjar roteiro, direção e escolhas para si próprios e criar, a partir disto, uma marca como sujeito-realizador, numa relação não só com a cinefilia, mas num apreço pelas imagens como um todo.

Porque se as irregularidades do tempo bastassem em si mesmas para justificar certo desgosto, descabidas de sustento ideológico por seus puros incômodos com uma imagem-movimento que privilegia a duração em detrimento do excesso do corte e da denotação, um número inimaginável de cineastas perderia significativamente o peso de sua obra. Não seriam Sang-Soo Hong e Kiyoshi Kurosawa dois grandes exemplos, para enumerar algo presente no contemporâneo, dessas narrativas que se transmutam num segundo ato, que se desdobram para ressignificar tudo aquilo que pensávamos a princípio? Não foi Apichatpong Weerasethakul que uniu o sobrenatural ao mundano numa mesma imagem que dura, cuja falta de extensão, de prolongamento, significaria no mínimo uma perda de sensorialidade e um acréscimo prejudicial de artifício? Aliás, parte do deslumbramento de sua matriz fantástica – e o mesmo acontece no Teobaldo de Rodrigo de Oliveira - está mesmo nessa quase palpabilidade do tempo. Arriscado argumentar, mas o que se tenta afirmar aqui é que uma obra possivelmente não precisa de palatabilidade para assumir certa relevância, especialmente porque no contexto corrente da ficção brasileira, há muito não se via um filme com o peso simbólico e narrativo que Teobaldo carrega.

Simbiose homoafetiva de dois que já se confundiram com um uno: 1) homem misterioso, dado como morto e que retorna depois de anos; 2) seu amigo de nobilíssimo caráter, ocupante do vazio do desaparecido como marido de uma Ariadne abandonada e filho assumido de uma mãe ensandecida cuja ausência é preenchida com uma nova imagem filial. Oliveira reencarna o embate brutal e delicado (sim, porque todo excesso, todo extremismo guarda paradoxos), tanto em sensibilidade quanto em fragilidade, de duas forças primordiais e masculinas num misto de rancor, violência, paixão e amizade, dormentes e agora manifestadas no que o passado e o presente têm de mais íntimo, nunca como tempos separados, mas como temporalidades que se fazem em conjunto, uma à sombra da outra, incessantemente. Como se, prestes a serem pais, prestes a se encarregarem com a existência de uma nova vida que veio tanto de seus corpos como daqueles das mães, Max e João tivessem de se lançar na espiral física e psicomágica do fantasma que os assombra, é eles e está entre eles ao mesmo tempo. Filme como catarse processual e indiscernível de dois-um, e ao mesmo tempo de um afeto castrado no que já-foi, mas que retorna pelos moldes do artifício shakespeariano do Teobaldo que se revolta pela fuga do outro (que havia se tornado a própria carne) e do Romeu cujo exílio é tão pessoal quanto convocado. Resta saber quem é quem.

E se a teatralidade das cusparadas de rancor e do confronto físico entre estes homens é cônscia, o plano noturno da mesa compartilhada por fantasmas vivos se eleva ao oposto diametral - o da organicidade - e difere da cena que claramente o inspirou, a da partilha do mundo banal pelos mortos em Tio Boonmee Que Pode Recordar de Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010): neste, os que já passaram emanam através da magia folclórica e atingem a naturalidade; no filme de Rodrigo, são os anjos da guarda, as figuras do imaginário atual e as aparições do porvir cuja existência, embora não compartilhe do mesmo instante que o de Max, é tão presente quanto o momento no qual ele se imprime, que de onírico só compartilha o fato de que o homem dorme. Oliveira, percebe-se, sabe bem que o mundo do inconsciente é o mesmo que este.

Perseguidos por um arqueiro sem território e tempo, que depois descobrimos ser emissário do complexo psicanalítico imortal e clássico do filho revoltado, João e Max, já feridos, transmutam-se momentaneamente num centauro. Haverá algo de mais simbólico na união de dois homens cuja resultante é a figura que se expressa como o misto entre a razão e o carnal para atingir o transcendente? Não se pode dizer ao certo que o ato místico se perpetua, mas a elevação pelos corpos no furor sexual é a resultante mais palpável dos vetores difusos da afetividade ancestral masculina. Reitero a proposição: Teobaldo Morto, Romeu Exilado pode não cativar pelo que seu temporal tem de extenso, mas recorda o espectador de um atestado aparentemente banal e redundante: o filme é corpo completo, não se dá em seu desmembramento ou em sua apreciação repartida. Constituída de blocos, sim, mas obra só inteira em peso na medida em que se fecha e que pulsa como um todo significante.

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