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Críticas

Cineplayers

O diálogo caótico de Miike.

9,0

A cena de abertura de O Teste Decisivo (Ôdishon, 1999) é filmada tal qual fosse um melodrama quase novelesco (a acepção generalista de novela: soap opera): um garoto vai ver a mãe  doente no hospital para levar flores para ela, apenas para descobrir quando chega lá que ela está morta, vítima de uma doença letal. Nesses primeiros minutos, Miike é quase caricato: tons brancos e pastéis, música triste, enquadramentos muito próximos, valorizando a dor da perda daquela forma praticamente sensacionalista que o inconsciente coletivo acabou se acostumando.

Pouco após essa cena, muda o gênero:  anos depois da perda, o viúvo Aoyama decide, aconselhado pelo filho e convencido pelo amigo, a fazer uma “audição” de atrizes para um filme fictício, que servirá na verdade para escolher uma nova esposa. Miike entra no terreno da comédia de costumes, criticando nesse ponto a misoginia velada de forma discreta – a maneira leve e engraçadinha com que filma esconde, justamente, a tal figura de alguém entrando no açougue e escolhendo com o que vai se banquetear. A naturalidade que as mulheres se submetem aos homens durante o tal teste de elenco seria deprimente, não fosse cômica.

É um início pouco habitual na carreira de um diretor que, com o passar dos anos, consolidou a fama de ser um lunático total. Mas é absolutamente necessário para entender o que vem após, quando finalmente Aoyama conhece Asami, moça que teve que largar a vocação como bailarina quando criança devido a uma lesão muscular.

Mesmo advertido pelo amigo, que não consegue encontrar nenhum dado referente ao passado da moça, o viúvo não consegue tirá-la da cabeça e acaba se envolvendo com ela. Ela guarda um segredo sinistro que nós sabemos e Aoyama não – tem um saco plástico com algo (ou alguém) vivo dentro, que se sacode sempre que o telefone toca. Acontece o interlúdio romântico, em um hotel do litoral . Asami se abre com seu pretendente, revelando que sofreu abuso sexual e torturas quando era criança. Aoyama declara o seu amor. Os dois transam. E então Asami some. Evapora, inexplicavelmente.

Nesse ponto, Miike, que pulou do melodrama para a comédia, pouco a pouco cria a sensação de suspense. Maliciosamente hábil, ele não está fazendo nada além de preparar o público para virar o filme em 180 graus. Esqueça todas as convenções que já foram estabelecidas até aqui: linearidade, coerência, críticas veladas, humor discreto.

Nesse momento, Miike rasga a cortina de Audition e traz à superfície a verdadeira face da obra: um filme demente, incoerente e extremo sobre perversão, sexualidade e ódio. Podre em seu niilismo – lembrando tanto o ero-guru (erótico + gore) dos quadrinhos B japoneses quanto às bestialidades literárias de Marquês de Sade – é um filme que não escolhe lados para atacar; os indivíduos são doentes, a sociedade é doente. Não tente procurar sentido – a lógica vai para o buraco no momento que Asami sumir e deixar o estado emocional de Aoyama em frangalhos até o momento que ela ressurge para transformar a obra em torture porn.

Nesse meio tempo, o filme de gêneros flutuantes funciona como uma viagem ruim de ácido: um pesadelo de abusos, torturas e mutilações que encontram confissões, lamentos e lembranças. Deem adeus a qualquer iluminação branca ou tom pastel. São cores fortes, berrantes, opacas, testemunhando eventos íntimos e introspectivos, repulsivos e imorais, em ambientes fechados, clastrofóbicos, escuros e estranhos.

O pico do filme  – onde Asami tortura Aoyama e faz o macho virar a figura submissa – éconsiderado difícil de assistir mesmo por figuras especializadas do meio, como Eli Roth e John Landis, e é perturbador: a fêmea japonesa (notoriamente dominada) vira a mesa, rejeita e destrói quem quer transformá-la em ideal, modelo, porto seguro. Longe de ser um comentário social, o filme de Miike é um comentário sexual. Não é um trato sobre a sociedade japonesa ou o indivíduo local: é um quadro em movimento sobre a perversão humana.

O cinema de Miike anda longe da normalidade. A coerência narrativa é preterida pelo diretor para criar pequenas set pieces envolvendo momentos de violência primitiva que não constrói uma narrativa tipicamente clássica – são vários momentos soltos que, organizados da forma que Miike organiza, criam picos de tensão, espera, suspense e agonia a todo momento. O tapete da verossimilhança, do realismo composto, com o qual muitos se preocupam para poder julgar uma obra como boa ou não já foi puxado há muito tempo.

A transição de Miike parece denunciar a velha lógica de  “o inferno são os outros” – o cinema tradicional pode guardar muitos momentos grotescos, ainda mais do que o seu, mas ainda vestido um manto de polida educação e civilização. O diretor rejeita o lugar comum; não só foge como o ataca. Seus melhores filmes são um resultado dessa luta constante contra o establishment educado e polido.

E Audition é um reflexo perfeito disso: o modo definitivo de pouco a pouco destruir convenções, estilhaçar narrativa, pular fora do realismo, cair de cabeça nos filtros e nas histórias apelativas, sangrentas e bizarras. É um uivo fatalista que destrói o mundinho racional do primeiro para emergir instinto e entropia no segundo.

É perturbador justamente pela sua carga tão pesada de desesperança e a aposta de todas as fichas na bestialidade. Machos misóginos e grotescos travestidos de seres humanos ou fêmeas com tendências misantrópicas e homicidas travestidas de moças tímidas e frustradas, não importa: a câmera de Miike foca no lado mais montruoso do ser humano. Nada mais do que receptáculos de carne que varrem os instintos pra debaixo do tapete com a tal “cultura contemporânea”. Não espere um grande projeto que venha substituir o que o diretor considera podre:  ele quer destruir o que acha errado, mas não sugere nada de novo no lugar.

É cinema sujo, feio e malvado, demente e marginal. É um passeio no lado extremo do imaginário humano. São 24 quadros por segundo, no último volume de uma lisergia podre e sinistra. E é uma das obras-primas de Miike, um dos diretores mais incisivos e anacrônicos no cenário cinematográfico não só japonês, mas mundial, que poucos param para prestar atenção. Para ele, pouco importa: ele continua descendo a lenha no lugar comum cada vez mais forte, cada vez de forma mais maníaca. Audition é, portanto, uma das grandes referências de um particular tipo de cinema que fala mais às vísceras do que ao neocórtex.

Comentários (11)

Lucas Nunes | quarta-feira, 16 de Abril de 2014 - 13:57

\"Melhor filme do Miike de longe(e mais sóbrio).\"

Lesson of the Evil é muito melhor que Audition.

Victor Ramos | quarta-feira, 16 de Abril de 2014 - 21:08

Miike não é o gore pelo gore, como muitos pensam; seu cinema é pela doença, e o gore é um sintoma dela. Gosto pra caramba.

Raphael da Silveira Leite Miguel | segunda-feira, 28 de Abril de 2014 - 00:04

Até Eli Roth tremeu nas bases com as cenas desse filme... Hahaha, virou prioridade ver esse. Gosto de filmes fora do convencional.

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