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Críticas

Cineplayers

A Teta Assustada é pequeno grande filme e, desde já, uns dos melhores lançamentos no circuito comercial brasileiro em 2009.

8,0

Não há como negar que, nos últimos anos, há um novo cinema sendo produzido na América do Sul. Melhor do ponto de vista tecnológico e mais autoral no aspecto temático, a filmografia do Cone Sul, antes relegada a um plano secundário, já começa a ganhar respeito dentro do cenário internacional. Talvez seja um exagero afirmar que esse movimento indique que o Brasil e seus vizinhos possuem uma indústria consolidada de cinema – a produção anual de filmes é muito inconstante e, em quantidade de lançamentos, ainda bem abaixo de outros centros como a Europa e a Ásia –, mas é fato que já é possível identificar o surgimento de alguns jovens cineastas com algo a dizer sobre seus países, seus costumes, seu povo e suas tradições.

No Brasil, por exemplo, os nomes de Fernando Meirelles, Walter Salles e José Padilha já ganharam o mundo. E atrás deles, há uma leva de outros profissionais que, se talvez nunca alcancem o mesmo estrelato, já revelaram seus talentos, como Heitor Dahlia, Beto Brant, Cao Hamburger, Marcelo Gomes, Karim Ainouz, Andrucha Waddington e Guel Arraes. Já na Argentina, há a regência trina formada por Pablo Trapero, Daniel Burman e Lucrecia Martel. O Uruguai, por sua vez, vem mostrando uma filmografia das mais consistentes, com filmes como Whisky, O Banheiro do Papa e Gigante. Até mesmo do Chile e Paraguai, países com produção cinematográfica praticamente nula, surgiram obras que conseguiram ultrapassar a barreira do mercado nacional, como Machuca, de Andrés Wood, e Hamaca Paraguaya, de Paz Encina, vencedora do Prêmio da Crítica Internacional na Mostra Um Certo Olhar em Cannes/2006.

E o que dizer do Peru? O que conhecemos desse país? Sim, sabemos que Lima é a sua capital, da escandalosa derrota da sua seleção de futebol para a Argentina e que nos tirou da final da Copa do Mundo de 1978, e que Alberto Fujimori, um dos políticos mais  corruptos que se tem notícia, foi seu presidente por três mandatos consecutivos. Do ponto de vista cinematográfico, o Peru sempre foi uma nulidade. Para se ter uma dimensão da coisa, em agosto de 2009 o IMDB listava apenas 517 produções de origem peruana, a maioria feita diretamente para a televisão.

Justamente por esse motivo, deve-se saudar o lançamento aqui no Brasil de A Teta Assustada, da diretora Claudia Llosa e que, surpreendentemente, arrebatou o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2009.

O título do filme se refere ao nome de uma doença que, segundo a crença local, é transmitida aos filhos pelo leite de mulheres que foram vítimas de violência sexual ocorridas no Peru durante os anos 1960 e 1970, quando o país estava imerso em fortes conflitos políticos e sociais.

É o caso de Fausta (Magali Solier), jovem mulher, de descendência indígena, que reside na periferia de Lima. Logo no início, vemos sua mãe Perpétua (Bárbara Lazón) cantarolar um episódio trágico da sua vida. Anos antes, terroristas a estupraram e assassinaram seu marido Josefo. Os criminosos não se importaram nem com o fato de a vítima estar grávida de Fausta.  O trauma causado em Perpétua foi de tal ordem que, pelo leito materno, a filha contraíra a enfermidade, que se exteriorizava a cada pressentimento de perigo (geralmente relacionado à figura masculina), por meio de sangramentos no nariz e desmaios.

Essa é a sua reação ao descobrir a morte da mãe. No hospital, o médico relata um fato ainda mais inusitado ao tio (Marino Ballón). Segundo ele, os sangramentos eram motivados pela existência de uma batata que Fausta introduzira em sua vagina. Na volta ao vilarejo, ela confessa ao tio que a batata representa sua proteção contra possíveis tentativas de estupro e que, no futuro, ela poderá retirá-la sem perder a capacidade de gerar uma criança.

Como uma última homenagem à mãe, Fausta quer enterrá-la em sua terra natal. No entanto, sua família é pobre e não tem condição de arcar com os custos de um velório digno. Fausta decide, então, embalsamar o corpo da genitora e escondê-lo embaixo da cama até que se encontre um meio de resolver o imbróglio. A solução parece surgir quando ela aceita o emprego de faxineira na casa de Aída (Susi Sanchez), uma pianista de meia-idade. Como a mulher não lhe concede qualquer adiantamento, Fausta é obrigada a manter o cadáver em sua casa até o recebimento do primeiro salário. Para Fausta, contudo, esse não é o principal problema. A real dificuldade será aceitar o fato de que, a partir dali, ela terá que viver num mundo em que sua mãe não está mais presente.

Em seu segundo longa-metragem (o anterior, Madeinusa, foi lançado em 2006), Claudia Llosa já começa a demonstrar suas influências. A primeira delas vem de Abbas Kiarostami. Para retratar a vida daquela comunidade indígena, Llosa claramente se inspira nas lições do cineasta iraniano (a longa escadaria que dá acesso à região que Fausta reside, nos remete à sequência de O Vento nos Levará, em que o protagonista é obrigado a andar vários quilômetros com seu carro para poder fazer uma ligação pelo telefone celular). Seu recorte se dá no limite entre o documentário e a ficção, a realidade e a fantasia. Nas sequências do vilarejo, a diretora interfere o mínimo possível. Sua câmera evita chamar a atenção para si. Sua preocupação é apenas captar o que acontece à sua frente, sejam as festas de casamento organizadas pelos tios ou as fofocas trocadas nos salões de cabeleireiros. O importante é fazer com que o público não consiga distinguir o real do encenado, como se ele estivesse efetivamente inserido naquela comunidade.

A narrativa de A Teta Assustada é repleta de metáforas e alegorias, o que aproxima a diretora Claudia Llosa dos filmes de Lucrecia Martel. No entanto, ao contrário da sensação que esse artifício traz nas obras da cineasta argentina, em A Teta Assustada ele nunca soa excessivamente intelectualizado, nem afasta a película de seu público. Pelo contrário. Os simbolismos se incorporam à história da libertação da protagonista de forma orgânica com o ritmo e o tom do filme, variando entre o realismo fantástico (afinal, o que significa aquela batata?), o filosófico (a piscina representando o limite tênue entre a morte e a vida) e o poético (o vôo do fio de cabelo da mãe de Fausta pela janela significando o início do desprendimento da filha ou piano que, mesmo quebrado, permanece emitindo sons).

Mas mais que Kiarostami e Martel, a maior influência de Claudia Llosa parece estar no cinema de Carlos Reygadas. Assim como acontecia em Batalha no Céu e Luz Silenciosa, os últimos trabalhos do diretor mexicano, o que mais chama a atenção em A Teta Assustada é a elaborada construção dos  planos e o rigor dos enquadramentos. Nada é desperdiçado. Não há um fotograma solto. Todos os gestos, olhares, caminhadas e contemplações são milimetricamente pensados e  contribuem enormemente para a caracterização dos personagens, especialmente da protagonista.

Há várias sequências que merecem destaque. Tomemos por exemplo a cena da morte de Perpetua. Fausta está sentada na cama, ao lado da mãe, moribunda. Ambas dialogam por meio de canções. Fausta levanta-se e isola-se no quadro, emoldurada por uma pequena janela. Ela percebe que sua mãe acaba de falecer. A câmera vai se aproximando lentamente de seu corpo. Ao cessar o movimento, Fausta permanece isolada no quadro. A diferença é que, agora, a janela, até então inofensiva, surge imensa, como que engolindo a personagem. A visão do mundo exterior é assustadora. É a vida que lhe chama. Pela primeira vez, Fausta deverá enfrentar os perigos que se encontram do lado de fora daquela janela, e dessa vez sem a mãe ao lado.

Ao longo do filme, a diretora Llosa opta sempre por transmitir a insegurança e o medo de Fausta não por meio de palavras, mas unicamente pela força das imagens. No início do filme, ela parece ser incapaz de andar por conta própria. Ao sair do hospital, Fausta segue os passos do tio. Ao ser levada à casa de Aída, novamente ele vai no rastro da tia. Dentro do recinto da pianista, Fausta acompanha a copeira, que vai lhe explicando os detalhes do serviço. No entanto, à medida que sua confiança aumenta, Fausta passa a caminhar por si só, como ocorre na sequência em que ela se desloca pelos corredores da casa de Aída e do teatro em que esta se apresenta.

O próprio aumento da auto-estima de Fausta não é verbalizado. A diretora nos transmite esse sentimento através de seu lento e gradual interesse pelo jardineiro Noé. No início, quando Fausta ainda demonstra uma completa aversão ao sexo masculino, Fausta e Noé raramente ocupam um mesmo plano. Quando isso acontece, Llosa prefere filmá-los de longe (como na cena em que eles estão no jardim e a câmera, dentro da cozinha) ou situá-los nos extremos opostos do quadro (é o que acontece na sequência em que Noé pede um copo d´água para Fausta). Llosa só permite que os personagens se aproximem fisicamente no instante que Fausta já se revela uma mulher minimamente mais segura.

Mesmo a personagem de Aída é retratada mais pela mise en scène do que por suas ações. A amplitude da sua casa, os imensos corredores e os espaços vazios refletem uma pessoa solitária, oca por dentro e amarga por fora.

Além do calvário de Fausta para se livrar da aversão aos homens que lhe foi deixada pela mãe (repare na sequência em que ela é incapaz de descer as escadas simplesmente porque um homem caminha no sentido contrário), A Teta Assustada pode ser lido através de sua chave política. Mesmo sem pronunciar seu nome uma única vez ao longo do filme, Claudia Llosa traz à tona o debate sobre as profundas marcas deixadas na população peruana pelos guerrilheiros do Sendero Luminoso.

Surgido em meados dos anos 1960, o grupo pregava o uso violência armada para combater um Estado que, segundo seus dogmas, era dominado pela ditadura latifundiária devidamente apoiada pelos Estados Unidos. A luta se tornou mais sangrenta ao longo dos ano 1980, quando os guerrilheiros partiram do discurso para ação, esparramando o terror no campo e na cidade. Apesar do radicalismo, extremado até mesmo para os esquerdistas de carteirinha, o Sendero conquistou um forte apoio entre a população mais pobre, especialmente a indígena. A perseguição àqueles que se mostravam contrários ao movimento era impiedosa. O Peru passou a ser conhecido no noticiário internacional como um país cuja fragilidade do governo central abria espaço para a formação de grupos de milícia paramilitares e frequentes violações aos direitos humanos.

A Teta Assustada prova que esse capítulo da história peruana, mesmo tendo ocorrido há várias décadas, ainda cala fundo na alma da sua população. Se de um lado, a diretora mostra o esforço do povo para enterrar seu passado (o tio de Fausta, por exemplo, alega que a Lima atual está a anos luz daquela terra sem lei), de outro, Llosa deixa claro que, para aqueles que foram vítimas direta da violência, como Fausta, a opressão sexual é um trauma difícil de superar. Como diz a cantiga que a protagonista recita para a sua mãe, já morta: "O tio não me entende, mamãe; eu levo isto como proteção; eu vi tudo de seu ventre; o que lhe fizeram, senti sua aflição; por isso levo isto; como um escudo de guerra; como um tampão; porque só o asco detém os asquerosos".

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