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Críticas

Cineplayers

Pouco inspirado, mas ainda assim inspirador.

7,0
O vazamento dos Pentagon Papers e sua publicação pelo jornal The Washington Post foi um episódio que marcou a história americana e a gestão do então presidente Richard Nixon, que governou o país por cinco anos, entre 69 e 74. O vazamento de documentos do Pentágono e a confirmação de que os EUA estavam há mais de 20 anos deliberadamente escondendo segredos militares sobre a ação do país no Vietnã, como a expansão da guerra e a interferência na soberania dos países, causou imensa quebra de confiança da população civil, que por sua vez já passava por intensas transformações culturais. Não muito tempo depois, Watergate seria o prego na tampa do caixão do governo Nixon, que renunciou ao cargo e decretou a chegada de um imaginário popular mais desconfiado e niilista.

The Post - A Guerra Secreta fala de um dos lados dessa história. A ode ao jornalismo de Steven Spielberg fala também sobre esse profundo momento de desconfiança, mas o ponto principal do diretor é enaltecer o questionamento, que o diretor parece ver como o papel principal de um jornalista. E também como isso está no cerne do ideário americano, onde a Primeira Emenda à Constituição americana, que protege o direito à liberdade de expressão consolida-se quase como um elemento mitológico nas narrativas ufanistas.

No início da década de 70, o Washington Post não passava por um de seus melhores momentos. Katharine Graham (Meryl Streep) herda já adulta o jornal do falecido marido e busca uma sobrevida tentando capitalizar as ações do jornal, enquanto o editor-chefe Ben Bradlee (Tom Hanks) e sua equipe tentam buscar matérias que coloquem o jornal no páreo de competição com gigantes como o New York Times. 

O conflito principal é esboçado em duas frentes: primeiro, os investidores não querem matérias polêmicas que abalem a reputação do jornal como negócio rentável, em grande parte o conflito de Katharine e o desafio de viver em um mundo masculino onde as mulheres não têm voz e são subestimadas por homens; segundo, a polêmica de receber os documentos do Pentágono pelas mãos do analista Daniel Ellsberg e enfrentar, junto aos outros jornais, a batalha contra o sistema que tenta calar com relações públicas e juízes a publicação dos arquivos ultrassecretos.

Se há um ufanismo declarado em The Post, Spielberg o filma como também fazia John Ford, diretor de clássicos como No Tempo das Diligências e Como Era Verde Meu Vale; seus personagens são tridimensionais, falhos, mas também a representação de um ideal. Cansada de ser inferiorizada e vista com a função de apenas entreter homens, Katharine Graham encontra como missão não só fazer o jornal existir, mas também preservar sua integridade, com Meryl Streep indo da vacilação ao orgulho próprio dos apaixonados por uma causa. Ben Bradlee, por sua vez, tem um certo cinismo próprio ao dos editores, sempre inabalável, convicto, resoluto em até admitir os erros - Tom Hanks o interpreta como praticamente um general das palavras.

A experiência fez Spielberg ter um controle de encenação afiado como faca; sua câmera parece voar pelos ambientes, onde em várias cenas segue seu estilo de cortes calculados e movimentos de câmera simples mas sofisticados e funcionais: sua lente é um narrador que troca de personagens, percebe objetos, os segue, e concede o corte quando não há mais vez. Enquanto isso, seu passeios pelos corredores, por camas lotadas de papel, por casas transformadas em escritório, por manifestações no meio da rua, em travellings discretos, pouco a pouco fazem com que a luta pela liberdade de imprensa assuma menos os contornos de como é o dia a dia de um jornal e mais um thriller da sobrevivência de indivíduos percebidos por figuras incompreensíveis.

Representantes da corrupção e de tudo que é inconstitucional, essas figuras não parecem ter vida individual, forma definida ou mesmo rosto. O espectador percebe isso facilmente: os juízes nunca são enquadrados sozinhos; os investidores são um coletivo de engravatados gélidos; os relações públicas são falas impessoais no viva voz dos telefones; o presidente é observado por uma máscara de binóculos sempre de costas e esbravejando ao telefone. O The Post é acossado pelo que não consegue definir, mas sabe o que tem que combater. Quando os protagonistas digladiam-se uns com os outros ou as suas consciências, ganham planos-sequências, closes, longos diálogos; os que os acossam compõem uma trama disforme, vulgar, parecendo quase sempre apenas descritiva. As figuras de autoridade são uma massa indistinguível; aqueles que as desacatam são células no microscópio.

Mas é bom nos lembrarmos que Spielberg afina tanto seu poder narrativo mas também frequentemente escorrega nos próprios vícios. A transição dos dramas pessoais para o miolo central do filme (jornal versus censura) derrapa em frequentes quedas de ritmo, onde o que é mais interessante escoa em conflitos expressados em voz alta que não dizem muita coisa no final das contas. Ao contrário de Hanks, sempre vibrante, Streep também parece padecer desse mal e demora a encontrar um tom acertado para a sua personagem, ora vacilante demais e de uma hora para outra plenamente confiante e dona da cena. E realmente é a jornada pretendida para a personagem, mas é uma construção muito artificial: de uma hora para outra Streep “liga a chave” e torna-se uma personagem idealista e poderosa, em uma transição pouco fluída.

Os conflitos expressados em voz alta em uma cena parecem até remeter a uma particular em A Lista de Schindler, onde os personagens se lembram em voz alta, se arrependem e expressam o desejo, recebem ou dão lições de moral, enfim: nada que pareça realmente com uma conversa realista. Mas também, esse é o drama de Spielberg, querendo ou não. Seus filmes de aventura muitas vezes são mais conscientes de si, têm mais presença de espírito e ironia. Seus dramas, não. São apaixonados, são defesas, são narrativas que ofuscam todas as outras para surgirem como artefatos poderosos no registro de uma ideia. Daí que cenas conclusivas como o veredito praticamente não precisarem das palavras julgadas necessárias anteriormente: em meio a uma narrativa muitas vezes prolixa, Spielberg sabe como compor uma imagem poderosa, inspiradora, com uma consciência simbólica que grande parte do cinema industrial sonha em ter.

Empatado no meio de campo, o comentário de Spielberg sobre a era Trump é um relato tão problemático quanto entusiasmado; sua metáfora eleva a verdade para além da concepção, ao terreno da utopia, perspectiva. E isso é o cinema de Spielberg, os filmes de gênero: os horizontes de perspectiva.

Comentários (3)

Carlos Eduardo | segunda-feira, 22 de Janeiro de 2018 - 14:37

Ansioso por este aqui.

Marllon Breno Lima | terça-feira, 23 de Janeiro de 2018 - 21:10

Só discordo sobre a Streep.
Vi o filme ontem e achei ela soberba. Uma performance cheia de nuances, como há tempos ela não entregava. A Kay Graham, antes dos "Papéis do Pentágono" era assim. Vacilante, insegura mas que tinha que achar um jeito de se impor. E mesmo nos momentos mais "Miranda Priestley" da Kay, você vê o esforço que a personagem faz. Nos momentos de firmeza, ainda assim você sente que ela está se obrigando a fazer aquilo pra não ser engolida. A personagem não gosta daquilo. Achei uma das melhores interpretações dela nos últimos anos.
Tom Hanks também está bem, mas como a crítica apontou como elogio, eu vejo como defeito. Bem "one note", sem nuance nenhuma. Bob Odenkirk arrebentou.
Meu problema com esse filme é só o roteiro que fica "preachy" demais em alguns momentos, mas as atuações resgatam o filme nesses momentos.

Augusto Barbosa | sexta-feira, 26 de Janeiro de 2018 - 12:21

Não vi disruptura em Streep não, é um crescendo o filme todo.

SPOILER

Vê-se nas reações e na postura dela durante mais da metade do filme o quanto ela é insegura, inferiorizada, invisibilizada... até a fatídica noite da publicação. Na primeira vez em que ela manda publicar, o faz de forma vacilante, ofegante, trôpega, começando a tomar a dianteira da situação, mais ainda assim incerta. Somente quando ela confirma sua posição, minutos depois, naquilo que deveria ter sido o clímax do filme, que ela demonstra estar segura de si, com um misto de ideal e raiva/cansaço de como havia sido tratada até ali.

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