Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Por vezes requintado e cativante, documentário sobre legendária banda fica a dever em outros tantos pontos.

6,0

Escrever algo realmente justo sobre “Shine a Light”, o recente filme sobre os Rolling Stones realizado por Martin Scorsese que chega agora em DVD não é tarefa fácil. Antes de tudo, algo paradoxal. Inevitavelmente será necessário cair em certos momentos na conjugação em primeira pessoa, pois este que vos escreve é um tremendo fã de ambos, um grande aficionado pelo diretor e um incansável pesquisador da história da banda, mas diante de um momento em que me vejo na obrigação de remar contra a maré e proferir comentários bastante severos a respeito deste trabalho. Além disso, estes dois ícones da cultura pop possuem uma lista quase infindável de aspectos em comum, sejam bons ou ruins. Tanto a banda quanto o diretor possuem carreiras brilhantes, porém mais empolgante em seus primeiros anos, representando a inovação, a transgressão, e deram vida a uma nova atitude e forma de se pensar e fazer música e cinema. Contudo hoje coincidentemente são artistas megalômanos presos a um rígido sistema que tem a grandeza e o faturamento como fins, marcado pela ausência total de inspiração ou ousadia, priorizando sempre a segura manutenção de uma sólida carreira de sucesso, posicionamento este que impossibilita qualquer alternativa viável de se fazer algo original e surpreendente. Afinal, se vejo algum novo filme ou ouço um novo álbum deles, é por consideração ao que já realizaram um dia, e acredito que eu não seja o único a encará-los dessa forma (talvez injusta, admito). Entretanto, pessoalmente penso que o que torna “Shine a Light” passível de curiosidade, apesar dos pesares, é pelo fato de, não somente por cristalizar a união desses dois gigantes, mas por ser a obra que, de forma não intencional, sintetiza em que se tornaram esses artistas que já tiveram dias melhores. Mas, ainda assim, são “eles” que estão lá – consegue perceber a gangorra emocional?

“Shine a Light” não é exatamente um filme; na verdade é uma obra inclassificável. Contudo, não há nada de muito original ou inovador ali – um bom exemplo disso seria o filme do Radiohead intitulado Meeting People is Easy, pra ficar em só uma comparação. Sob a batuta de Scorsese e Jagger, “Shine a Light” trata-se da filmagem de duas apresentações da banda no Beacon Theatre em Nova York em outubro de 2006, no intuito de capturar a essência do grupo, senti-los em um tom intimista diante de uma pequena platéia em contraste ao gigantismo de suas turnês. Soa legítimo. Ao lançá-lo, Martin Scorsese declarou que este seria um registro definitivo da banda para as gerações futuras. Apesar das esparsas utilizações de imagens de arquivo, depoimentos, e registros de bastidores pseudo-reais, este não é exatamente um documentário (como teria feito diretor com Bob Dylan em seu No Direction Home). Também não é exatamente o registro de uma apresentação, uma vez que o show gravado pouco tem a ver com as grandes aparições da banda em turnês para centenas de milhares (por vezes milhões) de pessoas – neste caso é uma pequena apresentação feita especialmente para o filme. Logo, o resultado é uma mescla de tudo isso, culminando num longa que fica no meio do caminho, não cumpre bem nem uma coisa nem outra. Scorsese teria, em princípio, pensado em gravar um show “real” da banda, mas concluiu: o que poderia fazer de diferente, se a banda já tem cinqüenta câmeras e a melhor iluminação e tudo o mais? Também cogitou um documentário, certamente ao estilo do projeto The Beatles Anthology, mas novamente concluiu: seria absolutamente inviável para uma banda de quase cinqüenta anos de carreira. Então a solução foi fazer algo híbrido senão amorfo, um “Shine a Light”. Mas teria valido a pena? O filme recebeu grandes críticas e elogios, confesso que não li nada de muito negativo, mas minha opinião neste caso é realmente idiossincrática. Apesar de todo o carisma e presença da banda, de ser inegavelmente muitíssimo bem filmado, trabalhado tecnicamente de modo exuberante, fotografia fantástica com profundidades de campos e escolhas de foco memoráveis, para mim o que parece é que neste “registro para as gerações futuras” torna-se lamentável os esforços do diretor para se fazer notar aos olhos do espectador com seus planos elaborados e inusitados – afinal, no fundo nota-se o que o diretor verdadeiramente deseja da audiência. Temos de pensar que este não é apenas mais um show dos Stones: é um show filmado por Scorsese! Ora...

Mais triste ainda é ver Mick Jagger, que de bluesman, encarnação do que havia de mais cool e alternativo, persona non grata do establishment entre outras façanhas, tenha paulatinamente se tornando um socialite afetado, uma espécie de cover da Tina Turner que saracoteia sem vergonha ao lado de artistas como Justin Timberlake, Black Eyed Peas e, neste caso, de Christina Aguilera – afinal é preciso se manter “jovem e atual”. Complementam o espetáculo ainda os guitarristas Buddy Guy (virtuose blueseira) e Jack White (outro que se perdeu na carreira), este último creio eu que para agradar os indies de plantão. Mas é aqui que a banda, que outrora de forma ultrajante vestia botas de couro e paletós cheios de estilo, agora dá lugar às estampas de oncinha e camisetinhas esvoaçastes, demonstrando o ápice de sua prostituição artística e comportamental. Obviamente que não dá pra ficar igual pra sempre, todos mudam, mas convenhamos, poderia ter sido pra algo um pouco melhor do que isso. O mesmo vale para o diretor, que simplesmente trocou a liberdade da sua autêntica linguagem pelos louros do academicismo e do reconhecimento em larga escala.

Já dizia John Lennon, após o fim dos Beatles, em uma entrevista para Jann Wenner registrada no livro “Lembranças de Lennon”, pg. 77, quando questionado sobre os Stones, praticamente antevendo um “Shine a Light” no futuro: “Acho muita autopromoção. Eu curto ‘Honky Tonk Women’, mas acho o Mick uma piada com toda aquela dança de bicha. Sempre achei. Gosto dele, quer dizer, vou assistir aos filmes e tudo mais, com todo mundo. Mas, cá entre nós, é uma piada.” É mais ou menos desta forma que encaro este filme em questão. Escrevendo e citando tudo isso, até parece que odeio o grupo. Pelo contrário. Rolling Stones é uma banda que está entre as minhas, digamos, cinco bandas favoritas ao menos. Em tom de brincadeira, costumo dizer que gosto deles desde o tempo em que eram “The” Rolling Stones, que ainda não tinham logo (ah, aquela língua), nem esquemas à moda U2, que o líder era Brian Jones, que se ouviam cravos, marimbas e dulcimers nos arranjos, enfim.  É engraçado pensar no fato de que, em exatas duas décadas antes de eu nascer, eles já lançavam o primeiro álbum. Contudo, há quase 50 anos, admiravelmente estão na ativa até hoje, fazendo extensas turnês, cada vez mais lucrativas, para um público surpreendentemente cada vez maior. Mas alguém ousaria dizer que Rolling Stones seja uma banda da minha geração, da sua, do nosso tempo – teriam alguma relevância real hoje? Não desejo que a banda acabe, não acho que para fazer rock‘n roll ou música pop precise ter pouca idade, absolutamente. Como bem se defendeu em entrevista à revista Bravo! em dezembro de 2002, edição da qual foi capa, Jagger disse que as pessoas teriam que se acostumar com a idéia de que um músico de rock envelhece e pode ter uma longa carreira, assim como ocorre no Jazz. Concordo inteiramente, mas como fã xiita da banda, lamento os rumos estéticos visuais e sonoros que a banda tomou especialmente depois dos anos 80 – que particularmente não me agradam.

Curiosamente, o título do filme foi retirado do nome de uma canção incluída no LP duplo de 1972 denominado “Exile on Main Street”, sem dúvida o mais elogiado pela crítica, embora meu álbum favorito da banda disparado seja “Aftermath”, de 1966. Basta ouvir as faixas “Lady Jane”, “Take It or Leave It”, “I am Waiting” ou “Out of Time” e entenderá o motivo. Outras curiosidades são a de que Mick Jagger está, desde os anos 60, flertando com o cinema. De Performance, filme inglês avant-gard bem ao estilo Swingging London, até produções como Fitzcarraldo (abandonou as gravações), lá estava um pouco promissor Jagger ator. A banda também já havia feito muitos filmes, filmando até com Jean-Luc Godard, neste caso o inominável One Plus One ou Sympathy for the Devil, como queira. Há ainda Gimme Shelter, Rock and Roll Circus e Charlie is my Darling, certamente registros bem melhores para a posteridade. Bem como Martin Scorsese também tem uma vasta relação com a música. Já dirigiu e produziu de série televisiva sobre o Blues a clipe do Michael Jackson! Seus maiores destaques nessa área são o show despedida da banda The Band intitulado “The Last Waltz” e o documentário No Direction Home. Nos filmes de Scorsese, frequentemente canções dos Rolling Stones estão incluídas na trilha. Para se ter uma idéia, somente em Cassino, Scorsese utilizou seis faixas da banda.

Enfim, chamar “Shine a Light” de um engodo por completo também não faz sentido. Pode-se dizer que a banda cativa a platéia, a produção do show é requintada, a fotografia é bela, o som límpido e tudo o mais, porém sinto a falta da magia que outrora já produziram. Mas também penso que, levando-se em conta os artistas que estão ali presentes, comparados há imensa maioria do que é produzido hoje em termos de música e cinema e ao que realmente há de ruim por aí, chega a ser um absurdo criticá-los. Mas por isso mesmo fica o ressentimento: eu esperava muito mais de um trabalho de Scorsese e dos Rolling Stones, de quem tanto sou fã. Mesmo com todos os defeitos, não pode nunca deixar de admirar uma banda que surgiu há tantos anos e sobreviveu ao Hard Rock, ao Heavy Metal, ao Punk, ao Grunge, ao Britpop e ao Indie sem virar lembrança do passado, e nem Mick Jagger e Keith Richards terem se tornado uma espécie de Roberto Carlos internacional (fãs do Rei, me desculpem). Mas fica a certeza de que Shine a Light não é nem um bom “Scorsese” nem um bom “Rolling Stones”. Assim como diz o ditado: nem tudo que reluz é ouro.

Comentários (0)

Faça login para comentar.