Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Tão pálido quanto seu visual sugere.

3,0

Por muitos anos, Frank Miller resistiu bravamente às investidas de Hollywood para adaptar suas obras, com medo que elas perdessem sua essência na transcrição para as telonas. Cedeu depois de ver uma pequena demonstração feita por Robert Rodriguez, nascendo assim sua co-direção no excelente e conciso Sin City – A Cidade do Pecado, de 2005. Na verdade, o trabalho fora praticamente todo dirigido por Rodriguez, que fez questão de inserir o nome de Miller por causa dos enquadramentos do filme, que recriavam quase que fielmente o que era visto nas páginas de origem, além de ganhar uma moral com o talentoso desenhista (quem sabe para futuras adaptações).

Porém, ao assistir The Spirit – O Filme, duas coisas ficam claras: a primeira é que Miller, agora assinando sozinho um filme, ainda não tem competência para conduzir uma produção desse naipe, pecando em praticamente todas as áreas do longa; e a segunda é que, ao adaptar a obra de Will Eisner de maneira equivocada (The Spirit, o quadrinho, não é de sua autoria, Miller assina apenas o roteiro), acabou fazendo com o Eisner o que ele tinha mais medo de que fizessem com suas obras: trucidar o material original com uma péssima adaptação.

Conta a história de Spirit (Gabriel Macht), um mulherengo herói com um poder forte de regeneração, que vive em conflito com seu arqui-inimigo Octopus (Samuel L. Jackson) - ambos estão sempre brigando, quase que como um passatempo. Quando a sensual Sand Saref (Eva Mendes, estupidamente bonita) e Octopus trocam um tesouro sem querer e decidem desfazer a confusão, Spirit vê uma brecha para acabar de vez por todas com os planos dele, além de passar a limpo um passado mal resolvido com Saref. Para isso, contará com a ajuda da polícia de Central City, a cidade que tanto ama e a quem sempre ajudou.

Um dos primeiros erros básicos de Miller é não definir bem as características de cada personagem. Enquanto o protagonista Gabriel exibe uma representação totalmente apática, Samuel L. Jackson exagera demais e Scarlett Johansson (também lindíssima aqui) adota um tom robótico irritante com a ingênua Silken Floss, principal ajudante de Octopus. O agora diretor mostra-se tão perdido que nunca encontra um tom ideal para as coisas que acontecem com seus personagens: há uma piada de extremo mau gosto ao vestir o vilão e sua ajudante de nazistas durante uma cena de experiência humana e tortura com Spirit – algo dispensável, tendo em mente o passado da Guerra em conhecimento (não, a cena não consegue funcionar como humor negro também).

O que nos leva ao segundo erro primário de Miller: a história é sobre Spirit, e não a cidade em que ele vive, mas o roteiro toda hora nos empurra algumas coisas que dão a entender que a intenção real do realizador era ter a cidade como protagonista, e não o herói. Em Sin City essa proposta funciona, pois as histórias são homogêneas e orgânicas como um todo, enquanto aqui o foco está óbvio demais em Spirit, deixando a cidade sempre como um background, e não como main. Não adianta o roteiro toda hora insistir e gerar frases do tipo “essa é minha cidade, amo-a e irei protegê-la a todo custo” se não é isso que vemos na tela, o que sentimos com as atitudes de seus protagonistas.

O terceiro erro das opções de Miller ficou por conta da narrativa. Se os quadros são bonitos (afinal, ele tem bons olhos para isso ao narrar em desenho o que quer contar), a parte narrativa como cinematografia se mostra falha por não conseguir manter o interesse do público na história que está sendo contada: faz com que um clássico dos quadrinhos pareça uma bomba em cena. Tudo é entediante, desde a história que origina o personagem até o desfecho da trama principal, sem graça, mal aproveitado e desinteressante (apenas os capangas clones de Octopus é que geram alguma diversão nessa salada toda).

O visual adotado é falho, pois não recria bem o preto-e-branco como fez Rodriguez em Sin City: são cores desbotadas, algo entre a obra supracitada e o esquecido Capitão Sky e o Mundo de Amanhã – o que, mais uma vez, não funcionou da maneira esperada, pois deixou o filme mais feio e artificial, evidenciando demais o que é cenário de verdade e o que foi feito pelo computador. Ainda que uma ou outra tela se mostre realmente bela, esse tipo de estética cansa quando não é bem empregada e denuncia que tudo o que estamos vendo é um filme mal feito.

Evidenciando totalmente sua desnecessária pressa ao querer conduzir mais uma vez uma obra (Miller não estudou cinema, sua experiência baseia-se no trabalho com Rodriguez), coloca-se na berlinda não uma, mas duas promessas com uma cajadada só: a possível carreira de filmes do diretor e os promissores trabalhos baseados nos quadrinhos de sucesso, que antes só eram conhecidos por uma fatia pequena do público.

Gostar de cinema é uma coisa, fazer é outra completamente diferente. Não dá nem para dizer que Miller errou a mão, afinal, ele não sabia nem o que estava fazendo ainda para errar. É preciso calma, orientação e muito, muito estudo para que não vá por água abaixo os filmes desse interessante estilo. A doce ironia da vida, o famoso crime e castigo: o gênio de toda uma classe artística se torna o mártir das mesmas pessoas, só que em uma mídia diferente. Não é insuportável, mas chega perto.

Comentários (0)

Faça login para comentar.