Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Quando o dedo na ferida também é cinema.

9,0
Um quadrado de pedra é montado no chão. A essa pedra é acrescida uma iluminação de led. Em outras passagens, vários montes de pedras perfilados e de tamanhos exatamente iguais são expostos numa galera. Taí, nos dois casos, isso é arte. É? Desse ponto de partida super instigante e abrangente se desdobrarão outros elementos e tramas, todas conectadas e comunicadas, no filme novo de Rúben Östlund, vindo do fenômeno Força Maior, indicado a diversos prêmios mundo afora três anos atrás. Só que o filme novo de Östlund, colocado de última hora na competição de Cannes, saiu de lá com uma insuspeita Palma de Ouro. Independente de mérito, o diretor volta a provocar bem-vindos debates e acaloradas observações sobre a sociedade atual. Se no filme anterior, o casamento enquanto instituição era questionado, colocado a prova, desmoronado, para depois tentar criar novas bases, aqui a intenção é fazer um apanhado das relações gerais de tratamento, com especial atenção a rede de percepção (ou não) ao semelhante, que está a nossa volta, e o que podemos fazer com a empatia, se é que ela existe em nós.

Cinematograficamente sofisticado, o longa é o candidato da Suécia ao Oscar de filme estrangeiro (e provável favorito) e não poderia ser mais urgente em todos os tiros que dispara. Ou seja, seu diretor prova mais uma vez ser bom de timing de projeto, lançando em nosso âmbito pessoal um petardo que debate o grau da importância da opinião do alheio no nosso dia a dia, o agressivo e muitas vezes inexplicável mercado de arte no mundo hoje, e olha com cinismo para o autocentrismo tão usual hoje nas rodas mais elevadas. Já exibindo uma espécie de assinatura ou marca particular, Östlund é um desses jovens realizadores ousados e repletos de frescor na forma como olham para o mundo, pegando pontos focais não necessariamente novos e ressignificando à luz do hoje. Para isso, constrói uma argamassa de desdobramentos rocambolescos em esquema de efeito dominó e "apenas" faz as peças derrubarem as da frente. O quadro é não apenas sedutor, como também de bela carpintaria de roteiro, que Östlund parece dominar como poucos hoje, ampliando sua visão autoral e sua área de atuação de maneira complementar, provando seu valor em ambas as áreas.

De montagem eletrizante, que transforma nosso caráter observador comum do espectador da sala escura em ponto de vetor das tensões transpostas da tela para o indivíduo, o jovem autor sueco abandona as relações privadas para medir o público, ainda que o olhar particular não seja abandonado. Graças a esse processo de montagem entre o micro e o macro das relações pessoais, o filme provoca o jocoso nas situações ora estapafúrdias pra constrangedoras, num espetáculo de sentimentos em 4D, atravessando a tela e nos fazendo se refém, como a todos na narrativa. Há de se aplaudir as ricas composições de planos e os acertos entre as escolhas de movimentar ou não a câmera, criando conceitos que se comunicam ao mesmo tempo com sua obra em formação e com a obra exata em questão. Suas escolhas também contribuem para aproximar ou afastar os seres através da captação de corpos e objetos, construção que já vinha sendo exibida a perfeição em 'Força Maior' e que aqui ganha escopo largo, o que permite a ele lidar com as relações entre personagens e espaços de maneira muito menos objetiva, porém de significados mais ambíguos.

O roteiro segue uma linha mesclando esquetes cotidianas acerca de um único personagem com a construção pelas mesmas de um arremedo de existência a pairar pelo longa, que estabelece esse personagem e suas intrincadas regras de relação com tudo que é alheio. Esse homem vivido com ampla competência por Claes Bang é o curador de um museu sueco de interesse pelo choque, com uma proposta nova de exposição de uma artista espanhola capaz de provocar polêmica, o tal quadrado no chão, e uma mensagem de caráter participativo no público. Tudo começa a ruir na trama propriamente dita quando uma agência de propaganda contratada para marquetear a exposição libera um vídeo tão polêmico quanto ofensivo à opinião pública e o curador cai em desgraça, no exato momento onde tudo ao redor dele igualmente cede, por conta da reunião das diversas esquetes que formaram esse apanhado sobre a arte, a empatia, a opinião alheia e a imagem pessoal que é exposta hoje, entre muitas outras coisas. Se ao apresentar as regras desse jogo no papel a desconfiança possa ser imediata, o resultado de tal roteiro na tela é surpreendente.

O resultado do pacote final é igualmente uma evolução do trabalho de Östlund, em como ele consegue retratar tão bem situações dolorosas e recônditas e indo agora a um processo de externamento de histeria coletiva e amplitude, podendo gerar comunicação com camadas muito elevadas e também com olhares muito distanciados do universo mostrado, porque ele universaliza seu roteiro à perfeição. O convite a se colocar naquele lugar onde acontecem aquelas situações mostradas é muito claro e quase de impossível recusa, o que torna a identificação com The Square praticamente inevitável, num filme que promove e provoca inúmeras discussões extra-filme, enquanto cria um trabalho de composição imagética dos mais positivamente feéricos da temporada.

Comentários (0)

Faça login para comentar.