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Críticas

Cineplayers

Um filme exigente, difícil, mas inesquecível para quem o vê.

8,0

A estréia da famosa diretora de teatro Julie Taymor no cinema foi uma adaptação da mais violenta, sangrenta e histérica peça de William Shakespeare, ''Titus Andronicus''. Ela própria escreveu o roteiro e fez as adaptações necessárias para levar esse texto forte e escatológico às telas, que ela havia dirigido com sucesso nos palcos cinco anos antes, em 1994. Reuniu uma equipe forte de técnicos (o diretor de arte Dante Ferreti e a figurista Milena Canonero) e recriou, de maneira bastante pessoal, mas sem adocicar o original, essa impressionante e muitas vezes indigesta história de vingança passada na época do Império Romano.

Antes de vermos a cena final, quando o general romano serve ao imperador e a sua mulher a carne dos filhos dela como prato principal, quebra o pescoço da própria filha e por fim enfia uma faca no pescoço da imperatriz, veremos os três filhos do general serem decapitados, a filha ter a língua cortada e as mãos arrancadas antes de ser martirizada e deflorada, a parteira do filho ilegímito da imperatriz ser apunhada na barriga e mais pelo menos uma centena de mortes, alguma delas explícitas, além de bacanais, orgias e pederastia, com um esquelético Jonathan Rhys Myers de calcinha e sutiã fazendo sexo com o irmão, Demetrius (Matthew Rhys).

Taymor nunca foi uma unanimidade. Suas peças frequentemente dividiam opiniões e sua atuação como diretora no National Theater de Nova York foi motivo de muita controvérsia. Quando, já consagrada, aceitou a tarefa de dirigir na Broadway uma obra dita mais comercial, a versão do filme O Rei Leão para os palcos, criou um dos marcos do teatro americano da década passada, venceu vários Tony (o Oscar do teatro) e se firmou com uma das artistas mais inquietas e provocantes dos EUA. Sem sentar nos louros, passou ao cinema, e a controvérsia só fez aumentar: além desse petardo de três horas de duração de visual impressionante que é Titus, fez na seqüência uma extraordinária filmobiografia de Frida Khalo em Frida e criou celeuma ao fazer um musical com a música dos Beatles, Across the Universe.

Goste-se ou não, concorde-se ou não com as idéias de madame Taylor, há que se reconhecer que ela tem idéias e sabe bem manejá-las. Anthony Hopkins faz o general romano Titus Andronicus que derrota os invasores Goths e captura sua rainha, Tamora (Jessica Lange). Mata seu filho mais velho, herdeiro do trono, e cozinha as tripas. É praticamente impossível resumir a trama, de tantas reviravoltas, mas é uma carnificina digna de filme de terror, em que sangue jorra sem parar e os cadáveres tombam a cada cinco minutos. Entremeando as mortes, os filosóficos versos de Shakespeare, alguns muito belos, discutindo poder, família, honra, dignidade, estado, guerra e o ser humano na sua pequenez.

A escola teatral de Julie Taymor é a mesma de Gabriel Vilella e Gerald Thomas no Brasil, ou seja, os clássicos revistos com ícones da cultura pop. Os centuriões romano de Taymor andam de motos, a imperatriz fuma Marlboro e o imperador, interpretado por um afetadíssimo Alan Cumming, veste Jean-Paul Gauthier – aliás, os figurinos, realmente impressionantes, de Milena Canonero, foram indicados ao Oscar. Não há no filme nada que lembre os filmes de época pesadões britânicos ou dos finalistas do prêmio da Academia. Estão a serviço da mente alucinantemente criativa de Taymor para criar um universo aberrante e pleno de significados, em que cada cena transpira originalidade.

O resultado é por vezes indigesto – afinal, a diretora está longe, muito longe, de fazer diversão suave e despretensiosa para as massas – e de mau gosto (bom gosto, seja lá o que for isso, não está nos planos de Ms. Taymor).  Seu único compromisso é com a arte sem limites. Se a peça de Shakespeare pede uma abordagem cortante e viceral, Julie Taymor a faz sem concessões. Vai ao limite, arrisca-se, consegue surpreender, com certeza. Tudo, menos o conformismo. Filmou na Itália, nas locações reais citadas na peça, com locações na Croácia (há um coliseu lá, uma vez que o de Roma não tem chão) e com parte do elenco da produção original da peça ''Titus Andronicus'' e não com as celebridades da TV.

Ensaiou com os atores por três semanas antes de dar início às filmagens e exigiu que todos moderassem os sotaques – afinal, estavam representando famílias e não podiam falar de maneira muito diferente uns dos outros. Deu aulas de história para os atores, explicando por que e como fez as fusões com a história atual (a sede do Império Romano no filme é o prédio mandado construir por Mussolini para seu governo fascista) enquanto os técnicos transformavam a parafernália dos estúdios Cinecittà, em Roma, nas locações do filme e o elenco ia tomando as formas das personagens. As leituras do texto com todo elenco está disponível no DVD duplo lançado nos EUA pela Fox, assim como todas as roupas e um documentário totalizando quase três horas de extras.

Assim, quando Anthony Hopkins morre com um candelabro espetado no peito, Alan Cumming é sufocado até à morte com uma colher e o amante da imperatriz é enterrado vivo na areia até o pescoço para morrer de fome e sede enquanto era devorado vivo pelos vermes do deserto, ninguém transparecia espantava em frente às câmeras. A diretora, uma verdadeira intelectual, não quis fazer um filme apelativo e superficial, com efeitos fáceis. Como para um texto desses, nas raias do absurdo, seria difícil passar naturalidade, ela tomou todo o cuidado para que os atores estivessem bastante inteirados do universo antes de encená-lo com contexto, respeito e sabedoria.

Coreógrafos treinaram os atores para perderem as manias pessoais e adotassem o gestual barroco. As filmagens, complicadíssimas, começavam às 4 h da manhã e só terminavam à meia-noite, ainda mais que Taymor escolheu a antiga bitola de 72mm para fazer o filme, no estilo dos filmes históricos italianos da década de 70, com enormes câmeras vagando dificilmente pelos carregados corredores de cenários, além da equipe da LucasFilm, para os efeitos especiais, a exigir mil retoques; sem contar a inexperiência da diretora, na sua estréia, e que boa parte das cenas eram coreografadas e tudo tinha de entrar na hora exata, caso contrário eram obrigados a voltar tudo do início.

A trilha sonora é assinada pelo marido da diretor, Elliot Goldenthal, e foi surrupiada pelos produtores do filme 300 – o caso de plágio terminou num acordo da justiça, com a Warner Bros. pedindo desculpas públicas ao compositor por ter roubado três passagens de Goldenthal e misturá-las à mediocridade sonora de 300.

Todo esse tour de force resultou num filme exigente, difícil, mas inesquecível para quem o vê. Taymor não nega suas origens teatrais, mas não é submissa a elas – soube passar para a nova mídia com inteligência e sobriedade. Pena que um produto tão bem acabado esteja condenado a um público tão restrito, se pensarmos na escala cinematográfica, mas com certeza é uma grande oportunidade para quem não viu a maestria de Taymor na Broadway. Ou seja, Titus é uma bênção.

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