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Críticas

Cineplayers

Tokyo! merece destaque nesta moda de filmes de episódios por possuir o que nenhum outro possui: uma unidade de cinema coerente.

7,0

Michel Gondry, Leos Carax e Joon-ho Bong são cineastas com diferentes propostas de Cinema, mas que em Tokyo! demonstram se encontrar em uma virtuosa sintonia. O filme é um característico projeto do cenário indie, que apesar de cair freqüentemente na mesmice por buscar a qualquer preço uma suposta “criatividade abundante”, mesmo que apenas para embelezamento de superfície – por vezes tratando o Cinema como propaganda de perfume - possibilita aos realizadores ousar em seu planejamento estético e narrativo. Porém, com exceção de Gondry, o grupo envolvido embarca virgem nesta moda e parece acatá-la conscientemente como um veículo para experimentações, um passaporte para viajar em um universo que se propõe conceitual logo nos primeiros minutos e em momento algum foge desta unidade proposta.

Tokyo! é uma brincadeira com a cultura japonesa, mas que por trás desta casca estilizada mete o dedo na ferida utilizando-se de temas pesados, polêmicos e que realmente têm muito a dizer, seja de forma direta e corrosiva ou por metáforas, sobre o país retratado. Em seus três contos, o filme apresenta uma base calcada no surrealismo e que transforma signos e características típicas do Japão em alavancas para observações ousadas, refletoras de uma visão questionadora sobre as mudanças que a sociedade moderna - cujo universo high tech, do qual o Japão é a mãe, tem se tornado uma espécie de linha condutora -, têm gerado no comportamento e nas relações humanas.

A paranóia que faz a garota se sentir mais útil no mundo sendo uma cadeira no conto de Michel Gondry, o homem que representa um mal estar social e que é uma espécie de cria da própria sociedade - e de sua incompreensão e hipocrisia e tudo mais - no turbulento filme de Leos Carax e o desejo de isolamento conseqüente do notório esfriamento das relações humanas da história de Joon-ho Bong são subdivisões de uma idéia que se compõe como um todo. E é esta a verdadeira virtude de Tokyo! e o motivo para fazer deste um filme diferenciado na já esgotada (se é que algum dia teve qualquer fôlego) fórmula de filmes de episódios: ao contrário de outros tantos lançados nos últimos tempos e mesmo com toda a dinâmica aplicada por seus realizadores, Tokyo! é uma trabalho sólido, que funciona como um filme só e não requer qualquer tempo de adaptação ou reajuste de conceitos de seus espectadores.

O primeiro conto, Interior Design, dirigido por Gondry (Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças), é o que mais se aproxima, assim como seu realizador, deste citado cinema indie. É um filme deslumbrado, que segue o estilo tradicional do diretor, recheado de cenas “bacanas” e trucagens de câmera e de set e minado por metáforas que exploram questionamentos existenciais recorrentes na nova geração, especialmente em jovens que povoam metrópoles e cidades de grande porte. As personagens de Gondry procuram entender o mundo e buscar um lugar nele, mas parecem sufocadas e desnorteadas. A solução encontrada pelo corpo da protagonista para acabar com a confusão mental é iniciar uma mutação que a transformará em um objeto inanimado mas que por fim acaba fazendo-a se sentir mais útil do que era quando humana.

É um assunto bastante sério e que deve casar com a visão de mundo de muita gente, e é conduzido com leveza e bom humor durante os dois primeiros atos e mutacionado por Gondry junto da protagonista, assumindo no final uma linguagem poética tanto visual quanto textual que certamente dividirá opiniões – particularmente gostava do filme bem mais quando não tentava empurrar questionamentos filosóficos goela abaixo como se fossem pedaços de confeite, apesar de eles fazerem parte do contexto.

Leos Carax (da obra-prima francesa Os Amantes da Pont-Neuf) também enfia muita coisa goela abaixo em seu média-metragem Merde, o segundo do longa, mas neste caso não existe qualquer interesse de confeitar o discurso. Pelo contrário. Carax amarra os membros do espectador, abre sua boca e despeja litros e litros de um veneno composto pelo próprio sangue de quem engole. Merde é um filme escatológico, visceral, dantesco e anomálico, e talvez por isto mesmo seja o mais próximo de nossa realidade, apesar de seu enredo ser basicamente o de um filme fantástico, e utilizar-se de uma fórmula popularizada pelos próprios japoneses: as grandes catástrofe com monstros. Sr. Merde, criatura com olhos brancos, barba ruiva e roupa verde, sai dos esgotos para tocar o terror nas ruas de Tóquio, assustando pedestres, destruindo e comendo objetos e explodindo coisas com granadas até virar a atração midiática preferida em rede nacional.

Carax literalmente pinta o caos, e este universo caótico se reflete também na linguagem utilizada, que é nada menos que brilhante. O diretor acompanha seu bizarro personagem principal através de longos e desgovernados planos-seqüência e constantemente compõe planos médios em contra-plongée mostrando a figura de Sr. Merde à frente e a cidade aos fundos, posicionando-o no quadro como uma ameaça que surge de dentro, e não de baixo dela. O personagem estupendamente interpretado por Denis Lavant é um ser bizarro, que se alimenta de flores e vive sobre escombros bélicos no subsolo da metrópole japonesa, dizendo detestar o povo daquele país e acreditando estar ali apenas porque seu deus quer que ele viva em uma sociedade que odeia e que o odeia. As cenas do tribunal, quando apenas um advogado francês que fala a mesma língua que a sua consegue compreendê-lo para poder construir sua defesa, catalisam o choque proporcionado por esta experiência limítrofe construída por Carax, que literalmente rasga o filme ao meio mas jamais permite à sua criatura desestabilizar o todo.

Todo que é completado com o conto de Joon-ho Bong, Shaking Tokyo, que excetuando o fato de não ter Gondry como diretor (é evidentemente o cineasta mais famoso dentre os três) tem tudo para ser a mais amada e compreendida das fábulas de Tokyo!. A história e especialmente a forma com que é contada é tão alucinada quanto as outras, mas sua temática pode ser mais facilmente digerida por potencializar de forma criativa, onírica e poética a preocupação recorrente no longa a respeito do destino das relações humanas neste mundo metropolitano e globalizado. Bong não poupa truques e trucagens e proporciona nos pouco mais de 30 minutos uma espécie de catálogo de criativas soluções visuais para as cenas mais simples, como por exemplo a apresentação da vida de seu personagem cuja realidade é a mais compacta possível por viver enclausurado dentro de um apartamento.

O olhar sensibilíssimo para detalhes do diretor é responsável por alguns dos momentos mais extasiantes de Tokyo! – a garota desmaiando e posteriormente acordando do coma ao receber um toque em um botão “despertar” tatuado no braço, recurso que volta a ser utilizado posteriormente e que só poderia dar certo com o respaldo de alguém com a delicadeza de Bong - , e se de uma forma geral a erraticidade de Carax não permite ao espectador cair de cabeça tão cedo em seu minimalismo é o incrível controle de câmera e a precisa estrutura narrativa quem vão conquistando aos poucos a atenção e a comoção do espectador até segurá-lo pelo coração na seqüência derradeira, um final simples mas que nos embebeda de uma agridoce sensação: de que, no final das contas, tudo pode melhorar com a descoberta do amor.

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