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Críticas

Cineplayers

Revisitando um amigo psicopata.

9,0

Se iremos falar em cinema popular italiano, é inevitável tocar também no famoso – e óbvio - trio que logo à frente irei citar. Ainda que esteja de um lado mais negligenciado entre os maiores pilares do giallo, Sergio Martino nada deveu a mestres como Dario Argento, Lucio Fulci e Mario Bava, estes que, apesar de guardarem para si certo grau de maldição perante suas importâncias, gozam de um público cativo que os defende com unhas e dentes, praticamente formando um corpo só. Mas Sergio Martino, com suas injustiças ou não, ainda é clássico entre aquelas bandas italianas, e Torso (I Corpi presentano tracce di violenza carnale, 1973) serve como forte exemplo para isso: seu estilo único de filmar a violência se faz presente, de forma praticamente sexual e onírica; a violência de seus trabalhos é nua, é algo que desperta no ser humano o seu lado mais animalesco – o prazer pelo sangue puro e vermelho, uma das características copiadas à exaustão nesta escola. E é justamente a sensualidade de sua obra que assusta, entregando, entre prazeres, o próprio nojo, a repulsa, e não apenas a violência cega; ela está ali por algum propósito que faz de seu cinema algo tão inconfundível. O propósito de Martino é tão único que fica impossível de ser misturado com a iluminação de Bava e seu prazer pela imagem boêmia, ou até mesmo do sexo selvagem entre Fulci e seus corpos, ou então a forma religiosa de Dario Argento em filmar a fragilidade da vida humana. O giallo que o homem faz é feito de curvas, de pernas, com a faca brilhando na escuridão e com sua lâmina passando lentamente pela fina camada de pele. Alguns poderão chamá-lo de “sexista”, mas sua obra não é sobre isso; é muito mais sobre o prazer de fazer cinema, de filmar coisas humanas – algo tão estranho e tão natural, diga-se de passagem - para despertar sentimentos diversos, longe de qualquer julgamento de “certo” ou “errado”.

Torso, logo ao iniciar, desperta a sensação de voyeurismo, com a câmera passeando lentamente pelo que aparenta ser uma orgia, com cortes que simulam a abertura e o fechamento de uma lente, e ao fundo uma música bem delicada. Fica visível logo de cara que se trata de um trabalho que preza por certa sofisticação: apesar de ser pertencente ao gênero suspense, os padrões italianos imprimem uma enorme delicadeza característica – é comum ao universo do giallo o tratamento da oposição, da sutileza e da brutalidade, do amor e do ódio etc. E ainda ali, na cena de abertura, uma marca que acompanhou o Martino em seus momentos de ouro: o psicológico. O homem sempre prezou, nos maiores momentos de seu cinema, pela exploração do obscuro da mentalidade humana, algo notável em pequenos detalhes isolados: a névoa quase sólida no sufocante western spaguetti Vingança Cega (Mannaja, 1977), as alucinações presentes no memorável Todas as Cores da Escuridão (Tutti i colori del buio, 1972), ou até mesmo na mão misteriosa que perfura com os próprios dedos os olhos de uma boneca em Torso etc. Ou seja, não se trata apenas do giallo em si, mas de seu cinema como uma unidade. Analisando esse aspecto de sua arte, a reflexão em torno de Torso ganha mais vida, pois estaremos compreendendo a assinatura do artista e de que forma isso pode interferir na obra tratada; trata-se de um autor, afinal.

É bom ter em mente que estamos tratando de cinema como um misterioso corpo sólido; tendo isso em vista, fica inútil discutir aspectos de “forma sobre conteúdo”, algo tão comum aos admiradores de um cinema dotado de forte sofisticação visual. E algo tão equivocado, diga-se de passagem. Não é porque Torso realiza um verdadeiro deleite aos nossos olhos que o mesmo estará adotando uma postura de Forma X Conteúdo; na verdade, ao adotar esse aspecto da extrema valorização da imagem e do som (pode parecer óbvio, mas muitos parecem acreditar que os italianos faziam cinema apenas com imagens), obtendo o resultado sólido que temos em mãos, podemos ter a convicção de que, na verdade, os italianos estavam desprezando essa dissociação, estabelecendo obras que eram trabalhadas como massas, numa situação em que ingredientes de propriedades diversas uniam-se para servir a uma única causa, a do Cinema; não passa de apenas um – grande recurso - estético. Torso simplesmente está lá, trabalhando com nossos sentidos. Mesmo que seja paradoxal, tendo em vista que o giallo no cinema venha de romances policiais com aquelas conhecidas histórias investigativas, Torso (bem como boa parte daquela escola de Cinema, tocando também nos filmes de aspecto sobrenatural, como Suspíria [idem, 1977] e Terror nas Trevas [E tu vivrai nel terrore - L'aldilà, 1981]), em si, é baseado justamente em uma ideologia de ruptura de regras, buscando estabelecer novas. Portanto, é impraticável inserir um conceito ignorado por boa parte dos pensamentos artísticos já da época, em algo que, justamente, estava adotando novos meios expressivos para a sua arte.

A mentalidade doentia que move Torso está nos detalhes mais simples: na forma pervertida como a câmera filma aquelas curvas femininas, nos personagens que aparecem somente para olhar o que não deveriam e que morrem em seguida, ou até mesmo nos personagens mais sacanas pelo sexo oposto (ou não), ou até mesmo no assassino que está olhando conosco, nos colocando na posição de cúmplice. É interessante, também, a forma específica como o assassino é retratado; podemos olhar para a sua forma, para a sua vestimenta e para a sua cabeça coberta por uma máscara. Mesmo não havendo o constante uso do recurso da câmera subjetiva para dar ao espectador uma sensação de fazer parte de um ritual perverso, a forma pessoal como as cenas de assassinato são retratadas oferece um show de mistério e de compartilhamento de uma doença – o homem passando a mão pelo corpo de uma de suas vítimas, e logo em seguida enfiando os dois dedos nos olhos da morta (momento intercalado por uma boneca recebendo o mesmo tratamento – a cena de abertura), processo seguido por um corte profundo na região do tórax. Como se não fosse suficiente tamanha carga psicológica, Martino ainda se baseia em teorias freudianas para desenvolver questões da infância que refletem na vida adulta. Torso é doente por definição própria. Enquanto o padrão médio de filmes sobre assassinos em série busca distanciar o espectador do antagonista, a obra de Martino, assim como boa parte dos giallos (muitos influenciados também pelo próprio, não custa repetir), constrói uma relação sexual, carnal, um estupro, como o próprio título original revela (“violenza carnale”). Uma obra-prima.

Comentários (11)

Bernardo D.I. Brum | sábado, 14 de Fevereiro de 2015 - 19:46

engraçado como os títulos em italiano faziam jus ao espírito da mídia original, né? (Corpi presentano tracce di violenza carnale, Non Se Sevizia Un Paperino...)

Victor Ramos | sábado, 14 de Fevereiro de 2015 - 20:36

Né isso... Muitos títulos são verdadeiros versos. O que dizer de "Il tuo vizio è una stanza chiusa e solo io ne ho la chiave"?

Eduardo da Conceição | domingo, 15 de Fevereiro de 2015 - 11:33

Alguém manda via MP um link para o download desse? Faz um tempo que procuro.

Pedro Zeffer | domingo, 15 de Fevereiro de 2015 - 14:54

o que estou fazendo aqui? como fã incondicional do giallo , em principal de bava, deveria estar vendo esse filme nesse exato momento! que vacilo meu! verei o quanto antes!

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