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Traidor, O

(Traditore, Il, 2019)
7,4
Média
15 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Delírios da máfia

6,5

Um grande "maestro", em determinada altura da trajetória, tem todo o direito de reinterpretar seus códigos e signos essenciais, refazer seus passos a partir de um prisma revisionista e reinterpretar conceitos caros a si. Com 80 anos recém completos, Marco Bellocchio chega a esse ponto confortável que lhe permite certa repetição sem soar redundante, justamente também por observá-los sem uma autorreverência, apenas recontextualizando os padrões.

A porta de entrada para os fantasmas do passado dessa vez é o acerto de contas com uma existência que produziu esses mesmos fantasmas, literalmente. Tommaso Buscetta é um homem encontrado no ocaso das atividades criminosas, tentando se afastar do centro do eventos e viver em paz com a família. Para tal, viaja com a esposa Cristina para um refúgio no Rio de Janeiro onde tentará recriar um conceito familiar em terras brasileiras. Longe dos negócios e dos filhos mais velhos, Buscetta observa seus companheiros de crime serem abatidos. Ao ser capturado e extraditado de volta à Itália, o capo (depois de torturado) decide entregar toda a Cosa Nostra.

Como em um filme de horror, os espectros começam a avançar em direção ao protagonista em estado de crescente tensão, onde o acesso é a princípio incrédulo e aos poucos se configura em uma aceitação de processo a revisitar sua própria história. Seus mortos voltam a assombrá-lo como um pedido de reparação pelos seus feitos como mafioso, e as vidas ceifadas vem cobrar suas dívidas. O sangue derramado nunca seca, voltando eventualmente a se fazer presente em cena através dessa conexão com lembranças muitas vezes macabras. 

Um modelo típico já aplicado antes por Bellocchio, o flashback não é necessariamente tratado da forma tradicional cinematográfica. O acesso a esse passado se dá pela via do fantástico e do delírio, que invade a narrativa por tantas vezes, artifício comum ao diretor. O filme passeia por dois continentes sempre chegando nessa estratégia, mostrando que o diretor continua fiel ao seus códigos, que não envelhecem e sempre adquirem significados amplificados a cada nova narrativa apresentada. Uma das cenas mais simbólicas de O Traidor é o momento em que o protagonista assiste ao próprio velório, em situação claustrofóbica.

O que talvez atravanque o percurso do longa é a própria estrutura biográfica, que prende Bellocchio a obrigações e que sempre prejudicam a fruição dos acontecimentos, que vão e voltam no tempo e passeiam por inúmeros julgamentos verdade seja dita, a maior parte deles absolutamente hilariante. Mas a ausência de preocupação com essa estrutura, que se permite ao filme um jogo radical de desconstrução de elipses temporais, também refletem fragilidades de continuidade, mantendo o projeto sempre na linha entre o erro e o acerto. O ritmo da edição se acumula entre essas questões problemáticas, igualmente claudicante, e que pra esse aspecto técnico específico evidencia os senões do filme.

No entanto, o filme traz no centro da narrativa Pierfrancesco Favino, um ator de imensos recursos e que aqui está no seu ápice. Ao lado de Maria Fernanda Cândido, forma uma família crivel dentro da amoralidade e a química entre ambos é absoluta. Isso se deve à entrega dos dois atores em particular e do elenco no geral, todos em grandes momentos (e Luigi Lo Cascio impressiona). Mas é parte do jogo cênico a responsabilidade que Bellocchio jogou nas costas de Favino, algo que o ator corresponde com excelência. Um filme sobre um grande líder se sobressai ao encontrar um grande intérprete, e em todas as cenas o ator prova que cabe uma produção inteira em suas costas, sendo sua parceria com o diretor o grande motivo para não perder O Traidor.

Crítica da cobertura do 52º Festival de Brasília

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