Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

David O. Russell dilui o cinema de Paul Thomas Anderson e de Martin Scorsese para vencer o Oscar.

6,0

O título original é American Hustle (vigarista, trapaceiro), mas deveria ser “Quero Ser Paul Thomas Anderson”. Trapaça (American Hustle, 2013) é um “heist movie” (uma trama policial cheia de reviravoltas) em tom farsesco que se pretende engraçadinha, mas é capaz de poucos risos; traz dois atores principais interpretando excessivamente (overacting) e uma insuportável narração que vem para tudo esclarecer, desanuviar a trama e facilitar a compreensão, além de uma colossal dose de cinismo. Seu jogo de cena, artificial, é elaborado e nada sutil, às vezes funciona, mas o resultado parece mais um sub-Boogie Nights - Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997), de Paul Thomas Anderson, sem o sexo e sem coragem de mostrar os órgãos sexuais – aliás, o filme de Russell é puritano e tem até cena de coito interrompido.

Em suas longas e difíceis 2 horas e 10 minutos, tem-se um início penoso (diretor demora demais a apresentar as personagens), mas depois o filme de certa forma deslancha por conta da feérica parte técnica: direção de arte, figurinos e fotografia são anabolizados e praticamente tomam a cena. Amy Adams, sempre com vestidos de generosíssimos decotes anos 70, tem os seios  filmados praticamente a cada cena, enquanto Bradley Cooper faz rolinhos no cabelo e Christian Bale, careca, aparece arrumando a peruca pouco convincente. O primeiro plano do filme é uma volta na enorme barrigona do personagem de Bale (o ator engordou uns 20 quilos para o papel, como foi repetito ad nauseum): o diretor faz piadinhas sardônicas com a vaidade de seu elenco o tempo todo. Segue assim até o final, nunca se cansa de jogar poeira nos olhos do público.

Os personagens, falastrões, não dão trégua e despejam diálogos o filme inteiro. Mesmo que alguns sejam espirituosos e razoavelmente inteligentes e engraçados, o excesso mais cansa do que diverte. Cooper, mal ator, na sua verborréia parece ter a mesma restrição mental do filme anterior de Russell, O Lado Bom da Vida (Silver Linings Playbook, 2012), e Christian Bale contra-ataca com a mesma falação, mas em dose dupla, no voiceover e no personagem principal, numa falação tal que dá saudade dele como Batman, pois usava uma máscara e não falava tanto. Cooper nunca convence como um ambicioso agente do FBI e, uma vez seduzido, sua demonstração de um homem abalado pela femme fatale beira o patético. Bale também jamais acerta o tom do "amigos dos mafiosos", a não ser pelas roupas barangas.

Se Trapaça não se transformou em nenhum desastre de filme foi porque, como mais uma vez acontece no cinema do diretor, as atrizes salvam o filme. Amy Adams como a vagabunda ambiciosa de sotaque fingido está ótima, e Jennifer Lawrence está espetacular, mesmo num papel pequeno de mulher traída. Faz a bela vulgar e tonta que, no entanto, sabe se defender. Tudo funciona quanto ela está em cena, diretor e atriz parecem se divertir e, quando desliza sensual e um tanto desajeitada no seu vestido branco com uma semi-argola no meio dos seios, com seu corpão grande e vistoso, seu cabelo loiro falso, Lawrence conseguiu reviver as grandes estrelas “gente como a gente” de Hollywood, carnal e feminina. Com as atrizes em cena, o filme parece se deslocar do mero decorativo, pois David O. Russell não quis retratar os anos 70 (longe disso), nem recontar a história da máfia misturada com políticos corruptos que deu origem ao filme. Prefere a ornamentação.

Detalhe: mesmo que Amy Adams tenha trabalhado com Russell antes, em O Vencedor (The Fighter, 2010), aqui ela está mais próxima, na maneira de interpretar, da esposa do pastor em O Mestre (The Master, 2012) de (olha ele aí de novo) Paul Thomas Anderson. Ela com seus seios puxam o filme de Russell, tendo um caso com ambos os personagens principais, uma ex-striper que parte para o embate com a mulher de um deles - a cena do beijo foi ideia de Adams, e Lawrence topou depois de certa resistência. Talvez seja por conta de Adams que o diretor meio que tenha mandado o roteiro às favas e tenha preferido concentrar-se na sua atriz. Ou talvez a decisão tenha sido do editor, quando o resultado final indicou que Amy Adams em cena justificaria o filme.

Mesmo forte em alguns momentos, Trapaça parece um filme mal costurado, vazio, meio que perdido num sem fim de referências visuais – parece um filme que o canadense Xavier Dolan teria feito se fosse hétero ou enrustido. Praticamente não há pausas dramáticas, só uma profusão de cenas. Sua câmera não fica estática, sempre à procura de algum detalhe insólito, tudo estranhamente parecido com o Martin Scorsese de Depois de Horas (After Hours, 1985). Daí entra Roberto De Niro com um óculos idêntico ao do diretor americano fazendo o papel de um gângster. Soa forçado, ou apenas mais uma gag nem tão engraçada assim, até porque o filme todo tem a mesma ambientação, exaustiva, de Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), também de Scorsese.

A edição do filme pode até ser rápida, os momentos de camera são ligeiros, mas o filme carece da mesma fluidez, em parte por conta da verborragia dos diálogos. Fica tudo meio parado, preso à enxurrada de palavras, enquanto tudo ao redor dá voltas. Assim, mesmo as sólidas interpretações femininas não conseguem fazer do filme uma grande obra, pois David O. Russell pensa que, por estar lidando com um assunto sério (e real), com atores quentes do momento e com dinheiro e produção de um grande estúdio (Columbia), a parada já estava ganha. Partiu então para a sátira um tanto quanto arrumadinha, ou mesmo presunçosa. Muita gente vai ver inteligência e humor, mas em meio a muita superficialidade e diluição, essa diluição recente do cinema, de um tipo de filme com alguns lances sagazes, mas de fundo conservador que tem um objetivo: ganhar Oscar.

Comentários (38)

Francisco Bandeira | terça-feira, 25 de Fevereiro de 2014 - 15:37

Mas a maioria do pessoal está pegando no pé do cidadão por causa de Oscar, isso mesmo? O prestígio do O. Russell vem de sua regularidade e de seu talento na direção de atores! Além de ser um ótimo roteirista, só não achou o ponto certo entre reverenciar o Scorsese e se manter original (tipo o PTA). Agora o povo só pega no pé dele e da Lawrence e usam o Oscar para justificar! Tsc... Tsc... Tsc...

Flavia Cristina | quinta-feira, 06 de Março de 2014 - 01:57

Concordo em gênero, número e grau com o Nathanael Buzelli, que parece ser o único crítico brasileiro que entendeu o filme. Ele foi bem aceito nos EUA porque tem uma trama que teceu a história real da decadência de algumas pessoas da época e partiu de duas narrativas, por isso parece confuso. Mas basta ter um pouco de boa vontade e menos picuinhas pra entender a história. Tô cansada da expressão \"superestimado\" pra falar do filme, dos atores e do diretor. Tem filmes muito mais ruins que até Oscar já ganharam, e ninguém fica pegando no pé deles desse jeito. Ou seria apenas para disfarçar uma incapacidade de terem entendido? Se alguns não entenderam nem O lado bom da vida como vão entender Trapaça? Parece que os verdadeiros trapaceiros são os críticos brasileiros, pois um filme que consegue 10 indicações ao Oscar ser considerado ruim, é demais pra mim! E concordo com o Francisco Bandeira, tão pegando demais no pé da JLaw e do diretor por causa do Oscar e só. Muito blá blá blá inútil 😠

Flavia Cristina | quinta-feira, 06 de Março de 2014 - 02:32

Quanto a crítica, pelo menos o autor acertou em falar da dupla de atrizes, que estão maravilhosas sim, querendo ou não. Jennifer Lawrence dá um show em pouco tempo de filme, e só fala que ela é superestimada quem não gosta dela apenas. Amy Adams prova que é boa demais. Só a dupla de atores que realmente não estão tão bem. Já não gosto muito do BCooper e Cristhian Bale não compromete, mas.... Agora me respondam: é crime fazer filme pra ganhar Oscar? O que foi 12 Anos de escravidão com um forte apelo e nada mais? Inclusive, este é um ponto semelhante a Trapaça, pois esta história retratada no filme, fora mais comum nos EUA do que aqui. Isso prova mais uma vez a má vontade com o filme de O.Russel. 12 Anos só nasceu pra ganhar o Oscar e nada mais, com um protagonista insosso e nada carismático. Não é porque trata de escravidão que devemos aplaudir pra não parecer preconceito. Este sim é um filme superestimado, onde é melhor assistir a um bom documentário sobre escravidão e só.

Faça login para comentar.