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Críticas

Cineplayers

Um interessante filme de atores e encontros.

8,0

'Filme de ator' é uma definição óbvia para o novo filme de Mathieu Amalric: Turnê. Neste, acompanhamos a turnê francesa de um grupo norte-americano de artistas do novo burlesco – espetáculo organizado pelo produtor francês Joachim Zand (interpretado pelo próprio Amalric). Temos assim a atuação e a performance como motes desse filme e, como seus pares inseparáveis, o exibicionismo e o narcisismo. Na fragilidade dessas relações entre a necessidade de mostrar e os excessos do voyeurismo, Turnê se equilibra de forma bastante irregular – e, ainda assim, quase sempre interessante.

De certa forma, poderíamos pensar em um filme de encontros. Há uma cena bastante singular quando Joachim abandona sua trupe para tentar resolver várias das questões pendentes que o produtor deixou em Paris ao sair da França para morar nos EUA. Nessa pequena viagem, de pouco mais do que um dia, ele precisa lidar com os filhos rebeldes, com os amigos ressentidos, com uma ex-amante doente, entre outros. A cada encontro o produtor é recebido com frieza e raiva, ninguém está contente com a volta do filho pródigo. Mas, antes de todos esses encontros explosivos com o seu passado, com o qual não haverá chance de reconciliação, Joachim pára em um posto de gasolina. Nesse momento, ele tem uma rápida conversa com a atendente do caixa. Os dois flertam. E não há nenhuma possibilidade que esse flerte passe dessas poucas palavras trocadas com simpatia naquele breve momento. Ainda assim, há uma leveza que perdura desse encontro efêmero. 

Há também o encontro, quase um embate, entre as formas de atuação, ou seja, as formas do corpo de se fazer representar nesse filme. De um lado, temos a trajetória de Joachim, esse ex-produtor de TV fracassado que luta desesperadamente para conseguir se restabelecer na sua profissão na França. O aspecto do personagem é sempre sujo, cansado, com olheiras, enfim, um corpo decadente. Por outro, temos as performistas do novo burlesco: mulheres grandes (em todos os sentidos), sempre maquiadas, montadas com perucas, cílios postiços e salto altos. Personagens que exibem suas formas físicas exuberantes de forma confiante, afirmativas. Seus corpos são pura pulsão e desejo.

Da mesma forma, existe uma disputa entre o masculino e o feminino no filme, que passa além da questão do gênero em si – um dos integrantes do espetáculo é um homem que se traveste, mas a sua relação com o corpo está próxima a relação das mulheres do espetáculo. Essa disputa aparece sobretudo nos momentos em que Joachim tenta dirigir o espetáculo, criticando a performance das artistas. E estas sempre respondem as críticas assumindo a autoria e a liberdade de criação por seus números. De certa forma, é uma disputa entre o improviso (o teatro de atrações) e a técnica (a mise en scène da televisão, do exaustivamente ensaiado). Disputa que só parece possível de ser mediada pelo cinema: a arte que uniu o show de atrações e a técnica industrial.

Esses pólos de representação do corpo também transparecem na forma de filmar. O filme se divide entre a câmera na mão, trêmula, que acompanha o angustiado produtor em suas muitas desventuras durante a turnê. E a câmera frontal, parada, que filma as apresentações das artistas. Nesses momentos de espetáculo, a câmera perde os tiques de cinema contemporâneo para se estabilizar. O espectador pode esquecer a sua presença e concentrar-se exclusivamente na imagem. Nessas cenas, não é preciso excesso: a performance basta. Um exemplo hipnotizante é a apresentação com a grande bola de soprar, é impossível desviar os olhos. Aqui, a trama do filme pouco importa, pois naquele instante a potência do corpo fala mais alto.

As comparações com o cinema de John Cassavetes são inevitáveis: há a mesma busca de filmar a arte como extensão da vida. Uma tentativa de encontrar os limites entre a representação no palco e a representação no cotidiano, sabendo que essas fronteiras são sempre fluídas. Mas, talvez, a diferença mais gritante entre os dois diretores é justamente a presença de Amalric como ator – presença que muitas vezes Cassavetes também exercia em seus filmes, porém nunca com tanto narcisismo. Enquanto podemos pensar na atriz Gena Rowlands como musa do diretor americano, Amalric parece apaixonar-se mais por si do que pelas artistas do burlesco. Mais do que um contraponto de encenações, a presença do seu corpo em cena parece não superar certo olhar ensimesmado da arte e do artista incompreendido.

Nesse sentido, a relação entre a tentativa de retornar para casa do produtor e as saudades de casa das artistas pende mais para o lado de Joachim. E as questões só se reconciliam diante do fracasso do produtor e da turnê. Assim, temos um filme sobre uma turnê que leva a uma praia deserta e a um hotel abandonado: ao nada e, ao mesmo tempo, ao encontro.

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