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Críticas

Cineplayers

Guardem bem o nome de Ti West.

7,5

Este é um título que desperta diversos sentimentos. Pudera: dirigido por um dos nomes que estão ajudando a revilatizar o desgastado cenário do cinema de horror norte-americano, Ti West, e apadrinhado por Eli Roth, O Último Sacramento (The Sacrament, 2013) divide-se entre o velho e o novo, entre o cinema experimental que Ruggero Deodato ajudou a moldar no início dos anos 80 e a execução massiva do mesmo a partir da metade dos anos 2000. Observar aquela câmera em primeira pessoa registrando um denso cenário verde a partir de um helicópeto é algo que não deixa dúvidas quanto às influências que Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980) exerceu aqui; e, curiosamente, West não resume a digital do polêmico italiano a meras referências de planos, mas a adiciona, especialmente, em sua própria narrativa, oferecendo ao seu público um pequeno olhar sobre a sua versão para o que seria o “inferno verde” – Deodato distanciou o homem de sua civilização para refletir alguns problemas da própria; West, em O Último Sacramento, faz justamente o oposto, propondo uma aproximação a fim de desencadear reflexões semelhantes. Este daqui está longe de ser mais um entre tantos falsos documentários que somente aparecem para encher o mercado, até mesmo porque é notável o tesão que é tido para filmar, algo que não pode ser dito de tantos outros que escondem direções incompetentes debaixo do pretexto de “filmagem amadora”.

O Último Sacramento logo chama a atenção em seus personagens: eles contrariam o lugar-comum de simples pessoas portando câmeras vagabundas em mãos; a nossa história será contada a partir de três documentaristas que aparecem para fazer um registro sobre uma pequena comunidade que promete ser o paraíso na Terra, tudo sob a companhia de uma câmera Canon C300 (o longa é registrado pelo modelo, inclusive nos momentos em que o diretor abandona a perspectiva em primeira pessoa). O horror aqui é estabelecido pela identificação com coisas que compõem principalmente o mundo contemporâneo, e o espectador é posto diante de problemas como fanatismo religioso, exploração política, violência etc, elementos que tocam no imaginário de quem convive constantemente com notícias de desentendimentos pelo mundo – até mesmo porque o próprio filme toma como base um fato, de Jim Jones e sua seita conhecida por um suicídio em massa ocorrido no ano de 1978. De qualquer maneira, ainda que o trabalho de Ti West seja calcado em fortes reflexões sobre temas urgentes (sem jamais cair no maniqueísmo; ótimo), é importante saber que a melhor coisa que ele tem a oferecer é a sua narrativa que flui de forma maravilhosa. Não é por acaso que o homem vem sendo visto como um exímio contador de histórias; curioso para alguém que vem trabalhando vorazmente o mesmo gênero que John Carpenter ajudou a moldar desde os anos 70, diga-se de passagem.

O artifício dos documentaristas foi uma bela jogada para evitar o uso daquela costumeira trepidação de câmera na mão tão comum ao estilo. Há o aproveitamento do lugar-comum para, justamente, desvencilhar-se dele: os planos não são filmados com mal de Parkinson, boa parte da obra se passa sob a claridade do dia, não existem aqueles patéticos jumpscares (do tipo: a câmera está virando e, BOM, aparece alguém/algo do nada) e vários outros pontos que impedem boa parte de filmes do gênero crescerem, além de outras coisas. Ti West se faz valer da construção climática para o estabelecimento do horror, gradativamente elevando o nível da tensão de forma bastante sutil, explorando a desconfiança entre seus personagens pelas coisas mais simples – a câmera tímida que captura olhares e atitudes tortas (como aqueles homens fortemente armados para proteger um lugar que diz pregar a paz, ou então a paralisante cena da entrevista com o Pai), a disposição dos personagens entre si (como a ideia de trabalhar a questão da crença e descrença e ainda aproveitar para dar foco a conflitos familiares) etc.

A escolha do antagonista é mais que plausível: Gene Jones. Seu perfil é um misto de lobo e cordeiro; é um típico senhorzinho que, logo ao bater os olhos, gera dúvidas. E isso é em elemento que, quando bem utilizado, tem tudo para dar muito certo. Jones foi o mesmo ator que interpretou aquele pobre homem da tensa cena da loja em Onde os Fracos não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007), contracenando com Javier Bardem; isso ajuda na construção de seu vilão em O Último Sacramento, revirando na mente de muitos as lembranças de um certo jogo de cara ou coroa. O Pai é certamente um dos melhores vilões em algum tempo; não é feita a distinção de bem ou mal em relação a sua pessoa, deixando essa lacuna preenchida mais pela loucura em seu estado puro (que surte um efeito maravilhoso de surpresa quanto às atitudes de quem a possui). O filme em vários momentos aparenta abandonar a perspectiva em primeira pessoa, o que novamente remete à obra de Ruggero Deodato em sua narrativa; essa dupla face, que para muitos pode gerar confusão, serve para mostrar que seu diretor não necessita cair na – atualmente - armadilha de longas que oferecem a sensação de testemunhar algo em tempo real completamente por meio de “rolos encontrados”. O Último Sacrameto, na verdade, veste a roupa de um documentário pronto sobre algo que já ocorreu, restando ao seu público a dúvida de como tudo foi desenvolvido (ou seja, não é trabalhado o acaso, mas sim o processo pelo qual aquelas pessoas passaram para que tudo fosse registrado e para que chegasse à nossa tela). Desde o início fica explícito que não se trata de um trabalho montado a partir de um material perdido, mas sim de um trabalho montado a partir de uma equipe que passou por aquilo e que sobreviveu para contar a história, abrindo um leque de possibilidades pouco imaginadas a um estilo tão desgastado. O tom de fato documental contribui para a construção de seus personagens, tópico negligenciado em – muitos - títulos como Atividade Paranormal (Paranormal Activity, 2007).

Porque o problema mesmo não está do estilo de execução a lá “mockumentary” ou “found footage”, mas sim na forma como o mesmo é executado, sobrando acima de tudo para quem o realiza. O Último Sacramento deixa isso bem claro, brincando conosco, meros espectadores e brinquedinhos do verdadeiro “Pai” ali (o diretor), testando os limites entre espectador e personagem (que se fundem à lente da câmera), ficção e realidade. Mesmo que encontre alguns problemas básicos, como a quebra de narrativa que ocorre quando um dos personagens retorna à comunidade para encontrar os demais, por exemplo, O Último Sacramento é um pleno exercício de horror moderno que justifica o valor que seu autor vem recebendo. Há aqui uma das cenas mais perturbadoras filmadas de uns anos para cá, fazendo clara alusão à grande tragédia planejada pelo já citado Jim Jones. Existe também uma situação em que uma das câmeras cai justamente nas mãos dos carrascos, alternando a nossa perspectiva de todo aquele cenário doente; ouro puro. Ti West, jovem e talentoso que é, parece estar finalmente formando uma unidade em seu cinema, algo que trabalhos anteriores (como A Casa do Diabo [The House of the Devil, 2009] e Hotel da Morte [The Innkeepers, 2011]) já levantavam suspeita. Abram os olhos para este aqui.

Comentários (7)

Victor Ramos | quinta-feira, 12 de Março de 2015 - 15:10

Pegando esse trecho (que pode ser conferido aqui http://migre.me/oZvR0) e o trabalho do homem em toda a sua filmografia, dá para ter uma ideia melhor de sua concepção de cinema. Sem contar que, vamos lembrar, O Último Sacramento respira Holocausto Canibal, que já apresentava essa "brincadeira" com a diegese (Romero também fez isso em 2008); não estamos falando de um zé qualquer - portando, seria estranho que alguém experiente pudesse "matar a linguagem" (quando a ideia posta em cheque está mais para o reaproveitamento). Acho que vale a pena também conferir outras coisas dele para ter um julgamento melhor.

Guilherme Santos | quinta-feira, 12 de Março de 2015 - 20:29

Do ti west acho a casa do diabo um filme maravilhoso, a tempos não via um atmosfera tão bem construída e uma direção tao precisa e inteligente em um filme de terror, sem contar que vc se sente assistindo um terror anos 70-80, hotel da morte eu também gosto bastante, porem o último sacramento achei bem menor que outros e não correspondeu minhas expectativas

Daniel Mendes | segunda-feira, 16 de Março de 2015 - 23:14

Bom filme, o sinistro é que o tal Jim Jones já morou a dois quarteirões da minha casa.

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