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Críticas

Cineplayers

De artifícios e sonhos

7,0

Representar o vazio existencial não é tarefa das mais fáceis no audiovisual. Todo tipo de poesia imagética já foi criada na tentativa de elaborar esse conceito abstrato de estado de espírito. O filme de Felipe Leibold tateia por algum tempo rumo a uma encruzilhada no qual se encontram a introspecção e a apatia, deixando o espectador a mercê de possibilidades sem concretude, que mais confundem que esclarecem. Um estado de torpor proposital acomete a jovem protagonista, que não consegue situar sua falta de tranquilidade em um campo reconhecível. Assim que os códigos do filme começam a se conectar e a escuridão narrativa se desfaz, 'Um e oitenta e seis avos' estabelece seu entendimento a partir de uma diagnóstico assustador do ponto de vista médico, mas cuja elaboração se torna eficiente para pontuar seu conceito de maneira metafórica.

A partir da morte da cachorrinha da mãe, a protagonista toma consciência do seu estado de espírito no limiar do esgotamento. Sem saber como evadir de tal incômodo crescente, a jovem mulher sem nome se isola gradativamente até esbarrar numa vizinha de sua idade que irrompe por sua vida, trazendo as respostas para perguntas que ela nem estava necessariamente fazendo. Na tentativa de reescrever seu absurdo histórico hospitalar, os exames a que se submete não fazem tanto efeito quanto a nova amizade, que lhe faz crescer uma flor interna quase literalmente. O filme vai aos poucos abandonando uma área de compreensão difusa para abarcar um terreno de resoluções visuais enérgicas, abandonando o tom único e explodindo em cores e luzes e tintas, para situar um novo lugar para a protagonista, como se a própria estivesse tardiamente se descobrindo.

A cargo de Leonardo Iglesias em ambos os flancos, tanto a fotografia quanto a montagem representam a elaboração visual do longa que definem sua natureza simbólica e apresentam seus dados para desvenda-los. A vibração das cores pretendidas na mise-en-scene é realçada pela luz de Iglesias, que estoura todos os tons apresentados e criando conceitos que separam o mundo oculto da protagonista do seu lugar efusivo posterior, um balé de contrastes entre o que se é, o que se sonha e a vontade de derrubar as bandeiras que as separam, que cai bem no filme. Já a montagem dá um ritmo positivamente crescente ao resultado do todo, cumprindo o papel de manter o filme constantemente numa zona insegura de dramaturgia, quase febril. É, portanto, um projeto de autoralidade clara, que abre caminhos de interesse junto ao futuro de Leibold.

O elenco consegue um entrosamento que se observa em constante construção e aprimoramento das relações, como devem ser naturalmente. São interações muito criveis, com elaboração naturalista que se choca com a explosão de artifício que o filme propõe. Como o trabalho de Leibold é propício de fabulação constante, sua opção por trabalhar o conjunto de atores de forma orgânica e pessoal é das mais felizes, mesmo em colocações não-usuais. Os lugares onde Talita Fauser e Julia Lamoglia se concentram, de preenchimento mútuo, cresce a cada novo encontro e promove a real faixa de interesse da produção, que preenche o propósito artificial de signos apresentados com vida limpa. No meio do manancial de propostas de sons e vibração visual, o bálsamo que equilibra o jogo é o material humano proposto por suas protagonistas, absolutamente embebidas de carisma, propriedade e talento. (sem esquecer a brilhante participação de Luiz Guilherme, um encanto)

Felipe Leibold é, até a metade da competição, o nome promissor que o Cine PE apresentou. Ainda que não tenha construído um filme de impacto sem defeitos, talvez o melhor seja estabelecer uma zona de elevação, intriga e surpresa com a própria carreira, e o rapaz faz isso empregando esses mesmos elementos em seu próprio longa de estreia, que incomoda ao mesmo tempo que refresca, que não julga suas inter-relações ao mesmo tempo em que descortina possibilidades cheias de camadas nas mesmas. Ainda que falte estofo ao entorno que ele apresenta, 'Um e oitenta e seis avos' instiga e provoca, mesmo que converse sobre obviedades na exposição de suas camadas; se toda obviedade metafórico fosse tratado com a respiração tão rejuvenescida como é feito aqui, obras cinematográficas avançariam menos viciadas, com a oportunidade que o filme oferece de crescer a cada novo momento onde nos debruçamos sobre ele. O cinema estranho agradece. 

Filme visto no Cine PE 2019

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