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Críticas

Cineplayers

Um novo produto da saturação.

4,0
A história já é mais ou menos conhecida: ao participar das Guerras Secretas, o Homem-Aranha encontrou um simbionte negro que aumentou seus poderes e lhe concedeu propriedades regenerativas. Porém, ao perceber que o simbionte afetava sua personalidade, tornando-o mais agressiva, acabou se separando dele já na Terra. A forma de vida acabou por tomar o corpo de Eddie Brock, um jornalista fracassado que nutria ódio pelo Homem-Aranha. O resultado foi Venom, introduzido em 1988 e desde então tendo se tornado não só um dos maiores inimigos do herói aracnídeo mas também um anti-herói que com o tempo ganharia até a minissérie própria.

O filme lançado nos cinemas essa semana, por sua vez, teve uma gestação complicada: um filme solo sobre Venom está sendo desenvolvido desde 1997, quando David S. Goyer (Homem de Aço) escreveu um roteiro sobre o personagem que a princípio seria estrelado por Dolph Lundgren (Rocky IV), mas o projeto nunca saiu do papel. Venom ficaria na gaveta até ser interpretado por Topher Grace (That’s 70 Show) em Homem-Aranha 3, filme largamente criticado onde Venom surgiu como uma imposição do produtor Avi Arad, que hoje se diz arrependido. 

Entre muitas idas e vindas e após mais três filmes do Homem-Aranha e o personagem sendo integrado ao MCU na década de 2010, a Sony reviveu o projeto contratando como roteirista Dante Harper (João e Maria: Caçadores de Bruxas) e como diretor Ruben Fleischer, conhecido pelo hit Zumbilândia. Será que dessa vez o filme solo de Venom sairia, mesmo após predições do co-criador Todd Mcfarlane que o personagem não funcionaria como figura central?

Se é pelo que McFarlane apontou, vá saber. Mas até que faz um certo sentido. Personagens anti-heróicos, violentos e incontroláveis tendem a ser mais trabalhosos e, sem o devido cuidado, podem trair a própria intenção original. Que é o que acontece pelo principal defeito do filme: o tom completamente incoerente.

Fato é que Venom parece não saber o que quer. Ser uma versão mais adulta do super-herói médio? Não é o caso. A não ser que se entenda como conteúdo adulto, sangue, fraturas e cabeças devoradas, mas a verdade é que de resto o novo Venom não difere muito de qualquer super-herói lá pelos finalmentes.

Há um ponto interessante: após Eddie Brock (Tom Hardy) perder tudo ao tentar expôr experimentos ilegais com seres humanos, o simbionte entra na sua vida no pior momento possível. Perdeu a namorada Anne (Michelle Williams), o emprego e o apartamento. Nessa hora tudo parece a pavimentação básica, algo problemática por conta do vilão Carlon Drake (Riz Ahmed), fundador da organização Life Foundation completamente afetado, unidimensional e maligno ao nível de caricatura.

Dá para se dizer que quando Eddie encontra Venom, o filme melhora. Tom Hardy faz uma composição interessante ao contrapor o homem frustrado e a entidade agressiva e seu jeito de falar atrapalhado, olhar perdido e gags físicas cômicas ficam entre as melhores coisas do filme. Normalmente ser um vigilante é uma escolha própria, uma paixão do personagem, um compromisso ético. Não deixa de ser interessante como o personagem principal por grande parte do tempo não sente a mínima vontade de encarnar a identidade secreta do título, ainda mais em momentos que ele serve apenas como espectador passivo enquanto o simbionte transgride os limites do personagem em frangalhos e acovardado. Ainda se fosse um filme sobre como o personagem passa dramática e sutilmente a aceitar sua condição especial… Mas claro que isso aqui não é terreno para sutilezas.

Como foi dito acima, o tom do filme é incoerente. Esses momentos propositalmente cômicos à lá buddy cop - filme de duplas policiais como 48 Horas ou Máquina Mortífera, onde uma aliança de pessoas distintas e opostas acaba sendo nosso fio condutor - dão espaço ao heroísmo de vigilante um tanto retrógrado e capenga, com o roteiro preguiçoso alterando as decisões de personagens repentinamente e com o simbionte desenvolvendo uma personalidade humana, quase simpática. Nesse sentido, Eddie Brock não é nada mais que um Homem-Aranha ou Super Homem da vida - ainda que mais carniceiro, ainda está basicamente lutando pela “coisa certa”, contra o “vilão malvado”, soldado de uma “nobre”. McFarlane parece estar certo pelo menos nesse caso: para funcionar como protagonista, Venom virou qualquer coisa menos Venom.

Venom está sendo descascado por aí como um filme ruim. E é um filme ruim mesmo. Muito por conta da saturação: fato é que nos últimos 10 anos (quando Nolan lançou Batman: O Cavaleiro das Trevas e o MCU começou com Homem de Ferro) nós tivemos filmes de super-herói demais. Quando o projeto megalomaníaco de Kevin Feige deu certo, todo mundo quis embarcar: a Warner com seu DCEU, a Sony e sua propriedade intelectual sobre o Aranha, a Fox trouxe os X-Men de volta. E isso saturou a indústria. Filmes demais em muito pouco tempo geram a repetição de ideias, a preguiça intelectual, a construção arquetípica tosca e rasteira.

Portanto, depois de um tempo, escrever sobre esses filmes de quadrinho parece uma atividade tão repetitiva quanto os próprios filmes em si. Piadas demais com boa parte delas não funcionando, personagens apressados em sua construção, dependência enorme do CGI, dos cortes excessivos e das câmeras sacolejantes para mostrar uma tensão que o filme não tem. Tudo preguiçosamente funcionando como uma verdadeira máquina de xerox onde para se ter um filme novo basta trocar a embalagem e incluir um nome famoso. 

Se dessa vez não engana ou não desce ao espectador, isso pode ser interpretado como um claro sinal de saturação. Capitão América: O Primeiro Vingador, Thor: Ragnarok, Homem de Ferro 3, Homem-Formiga, Deadpool e tantos outros apresentam o excesso de graça para justificar a carência de história inédita, os personagens com visual “descolado” mas que têm uma construção que apenas não nos importamos, o drama água-com-açúcar previsível e pretensamente emocionante correndo paralelo em ação a impedir a grande maldade, enfim. Tudo para soterrar momentos potencialmente interessantes em nome de requentar o lucro de forma constante. Para histórias realmente interessantes e inovadoras não seria melhor ler os próprios quadrinhos? Vale mesmo sacrificar qualidade em nome de públicos presos em círculos viciosos de cliffhangers e cenas pós-créditos? Até quando esse modelo é sustentável? 

Venom é mais um índice do problema e não tem a resposta para isso. Até porque falhou em entender o personagem e deu origem a um filme previsível, morno e de um heroísmo cafona - ou seja, nada do que esperaríamos vendo um filme do Venom.

Comentários (2)

Mateus da Silva Frota | sexta-feira, 30 de Novembro de 2018 - 14:18

Até quando este modelo é sustentável? Creio ser isso o fundamental da dúvida.

Alexandre Marcello de Figueiredo | sábado, 12 de Janeiro de 2019 - 22:13

Pelo que arrecadam com bilheteria, parece que nem tão cedo Hollywood vai parar com esses excessos de filmes de heróis.

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