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Críticas

Cineplayers

Calor que vaza.

7,5
O diretor Kirill Serebrennikov está prestes a completar 50 anos, mas nem parece. Foi pro Festival de Cannes desse ano com um filme embaixo do braço que nos faz duvidar se ele teria mais de 20, tamanho é o desprendimento, energia, vitalidade, frescor que transpira de Verão, cujo título é autoexplicativo: por mais que se renegue a estação do ano que representa o calor, não dá pra negar o tanto de efervescência ela trás no contexto geral das coisas. E na verdade nem importa muito a época em que o longa se passa, porque o contexto que seu título impregna é o da beleza que a criatividade exerce em cada elemento, e nada mais reluzente que o verão pra estampar isso. Com 20 minutos de projeção estamos numa praia, e um dos protagonistas canta a música-título; pronto, ali o filme ganhou cada espectador com seu misto de inocência e sede de vida, típicas da juventude.

O ponto de partida não tem nada de novo. A cena é a da Rússia em meados de 1980, na divisão roqueira-underground-punk local. Temos então um "astro" "maduro" (nem tão astro, nem tão maduro assim) estabelecido na região e nas regras de etiqueta que o permitem ser visto como um mentor para os novos talentos - ainda que ele mal tenha 10 anos a mais que os meninos a surgir. Eis que nessa sequência praiana aparece um novo rapaz, uma figura no mínimo exótica no contexto visual, descendente de orientais. Seu talento exposto naquela roda de fogueira se sobressai, e Mike se aproxima de Viktor sem que a princípio entendamos a ideia. Fica clara? Não muito, a relação que nasce entre eles com a adição da esposa de Mike nunca é muito explicitada, e isso é poderoso e essencial para criar uma atmosfera de dúvida permanente. Independente dos desejos e das intenções, Mike se torna o padrinho de Viktor. O resto é História.

Literalmente. O filme se inspira em fatos ocorridos na Rússia de 30 anos atrás e consegue a façanha extraordinária e já descrita de oxigenar um lugar repleto de repressão em um período ainda mais tenso. O olhar de Kirill para o redor é de extrema ternura por cada elemento disposto, o que surpreende quem conhece a filmografia dura e de impacto dramático que ele vinha construindo. Aqui, o russo desenha uma possibilidade viável dentro do perseguição: a liberdade acima das convenções, sobrepondo-as até, e redefinindo o futuro de um povo. Talvez seja um filme ainda mais necessário a hoje do que se imagina, um raio de sol em preto e branco que ainda assim consegue esquentar e envolver. Essa característica inclusive é um dos achados do longa, resumir suas cores a duas e ampliar a abrangência emocional que emana do mesmo, traçando uma inteligente incongruência.

Sua montagem que abençoa os clipes e entrega uma perspectiva temporal típica do período é outro acerto de construção. Kirill insere pelo menos 3 videoclipes com clássicos do rock acoplados fazendo deles parte integrantes de delírios narrativos propostos pelo próprio roteiro, uma licença poética dentro do realismo igualmente poético que ele insinua, se é que uma produção em pb pode ser minimamente chamado de realista. Mas Kirill consegue mais um  equilíbrio, sendo real e onírico ao mesmo tempo e permitindo isso de maneira natural ao seu filme. Essa característica é uma das camadas mais interessantes da produção, que passeia com extrema franqueza do fato ao sonho. O talento do diretor para traçar o retrato de um tempo e nos arremessar até ele é fruto de sutileza e também de uma leitura fiel à história recriada, tanto no que é revivido quanto no que é imaginado.

O filme infelizmente acaba resvalando em lógicas antiquadas para amarrar sua trajetória, incluindo aí até uma diminuição da importância de tipos que acabam tendo seu potencial dramático diminuído, apesar da disposição na direção deles. Se o roteiro não segue o nível imagético alcançado, criando lugares comuns como desfechos, o trio protagonista e o elenco coadjuvante que os acompanha tem lugares de destaque entre os méritos do filme, dando carisma e talento a cada uma das cenas, que são tão quentes justamente por conta da entrega coletiva. Aliás essa é um dado perceptível por todo o tempo, de como o grupo disponível na frente e atrás das câmeras não apenas se divertiu tanto em cena, mas o quanto dessa diversão era unida intrinsecamente à qualidade do que é produzido. Definitivamente um acerto.

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