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Críticas

Cineplayers

Porque da explosão surgiu não só o cinema, mas a música, o teatro e a literatura.

9,0

Chateada por ter sido atrasada pela cidade, que me fez perder alguns minutos do filme em meio a um engarrafamento sem motivo, lá pelas tantas vejo que Heitor (Marco Ricca - que também aparece como produtor) está separado de Júlia (Alice Braga) por um mar de olhos-faróis, numa cidade chamada São Paulo – que no filme interpreta o papel de si mesma, e sem dúvida exerce um papel. Pensei então que alguma sincronicidade fez com que eu, antes mesmo de saber, estivesse no lugar do personagem, pra depois entender o que se passa. É porque quem vive na Via Láctea sabe que é só um dos zilhões de fragmentos flutuantes que vão e voltam, em círculos, sendo personagens de toda essa confusão.

Então pulemos a parte em que obviamente me identifiquei com a história.

Lina Chamie, que teve seu primeiro longa indicado para a mostra paralela de Cannes (Tônica Dominante, 2000) usa com notável sabedoria a poética para contar a história comum de mais um amor que começa e termina. E a poética não é unicamente cinematográfica: Lina Chamie compõe a história de Heitor e Júlia embalada por uma música quase-personagem de tão bem encaixada, de tão ativa na construção da emoção de cada cena. Mas não seria de se estranhar, já que Lina tem formação musical acadêmica. Ela envolve a trama com a música de Satie (compositor e pianista francês, morto na década de 1920), Mozart e Gil, pois que a música parece fazer exatamente isso em A Via Láctea: envolver a atmosfera do filme como uma redoma, de onde a ação escapole ao explodir.

Aliás, a diretora forja seu filme usando também o teatro e a literatura, de maneiras convencionais e não-convencionais. O teatro vem com a profissão da personagem Júlia, que é atriz e na história aparece como uma das bacantes de uma peça de mesmo nome (As Bacantes), quando encontra Heitor. E isso é um dos elementos que nos ajudam a compreender as diferenças que existem nas personalidades do casal. Júlia é mais livre; Heitor mais apegado.

A literatura também ocupa um espaço na trama. Um espaço delicado, às vezes preenchendo-a de narrativa, quando Heitor começa a expressar seus sentimentos em forma de poemas. Ou quando em devaneios dele, vemos Júlia ou a mãe de Heitor (Mariana Lima), recitando poemas de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e também do pai da cineasta, Mario Chamie. O literário também se expressa através da cidade-personagem, quando no caminho entre o amado e seu amor, frases são lidas em paredes, em túneis, em outdoors, como se o todo estivesse concatenado à história e os sentimentos dos personagens de alguma forma "vazassem" e contaminasse todo o caminho, todo o cenário.

E dentro desse universo de subjetividade que a história se constrói: Heitor sofre grande abalo ao receber um telefonema de sua namorada Júlia, que neste instante termina a relação entre os dois. A partir daí, ele sai tentando encontrá-la e o acompanhamos nesse trajeto, que é circular e confuso, onde ele se aproxima e se distancia; onde o tempo vai e volta; onde Júlia é o alvo, mas é a cidade quem manipula os caminhos.

Nessa busca ele conversa consigo mesmo e com o locutor do rádio. Seu caminho é entrecortado por momentos dos dois, como a cena da livraria em que o casal brinca de esconder-se e relevar-se entre as estantes, em mais uma metáfora. Ou no telhado, em que eles parecem se sobrepor à cidade uma única vez.

Em meio a essa narrativa delicada, a câmera nos leva ao banco de passageiros, pra dentro da ambulância. É uma câmera intrusiva que nos faz cúmplices de tudo. São ângulos fechados de câmera na mão, em que até a cidade é vista de ângulos diferentes e pequenos. Em contrapartida paisagens e galáxias em formação aliviam o olhar em algumas cenas.

Toda a ação parece desalinhada e Heitor parece um louco obcecado por encontrar a namorada. Um louco que esbarra em uma criança de rua que sabe que Júlia ainda não ligou para aquele outro homem. Que vê seu rival a alguns metros, no mesmo engarrafamento, comprando flores pra quem? "Porque o vendedor de flores falou com ele e não comigo?" E o assaltante nem quer lhe assaltar: ele vem só para lhe abrir os olhos e lhe expor sua verdadeira e trágica situação, mas leva o relógio para não deixar tudo tão óbvio. A bateria do celular acaba e ele se perde. E parece que estamos diante do pior dia na vida de alguém. E é.

Até os letreiros finais são bonitos e o filme é de todos.

E sim, no final Júlia e Heitor se encontram. Mas já é o final pra nós e pra eles, principalmente para Heitor. Aliás, Marco Ricca numa boa atuação, principalmente nos momentos de raiva, é um outro motivo pra se assistir A Via Láctea, juntamente com todo o lirismo do filme. Excelente produção. Boas atuações. Fotografia difícil e instigante. Direção e roteiro, este último divido entre Lina e Aleksei Abib, compõem um filme lírico, poético e delicado. Um filme sobre um casal, uma cidade, o amor, e a morte.

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