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Críticas

Cineplayers

Uma crônica hilária e sombria da nossa era.

5,0
Em sua segunda indicação a melhor diretor, McKay começou sua jornada rumo ao primeiro escalão dos novos diretores de Hollywood como roteirista-chefe do humorístico Saturday Night Live, onde ficou entre 1995 e 2001. Foi lá que fez amizade com o ator e humorista Will Ferrell e iniciou sua carreira como diretor de cinema em O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy (2004), pastelão que viria a angariar uma fama cult. Anos depois, ao fazer seu primeiro filme sem Ferrell em A Grande Aposta (2015), McKay descobriu novo fôlego na carreira em uma comédia dramática sobre quatro financistas que conseguem prever a crise de 2008 e resolvem tirar proveito do vindouro colapso econômico americano, “investindo contra”.

Deu certo: o filme, cujo elenco possuía estrelas do quilate de Brad Pitt (Clube da Luta), Ryan Gosling (Drive), Steve Carrell (Pequena Miss Sunshine) e Christian Bale (Psicopata Americano) foi indicado a quatro prêmios da Academia e saiu de lá com o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado. O estilo entrecortado e rápido do roteiro conquistou fãs ao explicar para o espectador de forma didática e ácida como o principal mercado do mundo quebrou devido à ganância de seus investidores. 

Agora, em 2018, McKay está de volta com Vice, onde repete a parceria com Christian Bale para apresentar ao público a história de Dick Cheney, vice-presidente à época dos fatos descritos em A Grande Aposta e segundo filme a retratar a presidência dos EUA entre 2001 e 2009 após W., de Oliver Stone, onde o presidente dos EUA foi interpretado por Josh Brolin (Deadpool 2) e Cheney foi interpretado Richard Dreyfuss (Tubarão).

Cheney, hoje em dia, é tido como o mais poderoso vice-presidente da história. Teve como primeiro cargo importante uma chefia de gabinete na Casa Branca em 1975 durante o governo de Gerald Ford e a partir daí só cresceu, sendo também Secretário de Defesa durante o governo de George H. W. Bush e chefe da empresa petrolífera Halliburton. De início, recusou a proposta de ser vice de Bush, considerando o cargo mais simbólico do que prático. Mas tudo mudou quando percebeu a inexperiência do presidente de passado privilegiado e festeiro. E com o atentado terrorista, Cheney viu a oportunidade perfeita de exercer seu poder, nos eventos que acabaram desembocando na guerra do Iraque.

McKay não perdeu o senso de deboche político mostrado em A Grande Aposta, com direito até a um narrador irônico (Jesse Plemons, que nos conta a vida de Cheney de cabo a rabo, desde quando era um jovem preguiçoso e medíocre no Wyoming, sendo apoiado incondicionalmente na vida política por Lynne Chenney (Amy Adams, de A Chegada) e sua escalada ao poder que acabou tomando das mãos de Bush (Sam Rockwell, de Três Anúncios para um Crime). Com uma conexão que só será vista lá na frente, o narrador Kurt, ex-veterano do Afeganistão e Iraque honra a tradição de apresentar um panorama irônico do todo absurdo e que, se não fosse pelo recurso extraído das narrativas épicas, pareceria quase impossível de ser compreendido.

A Guerra ao Terror de Bush e Cheney já conta com uma filmografia ficcional e documental extensa - Fahrenheit 11 de Setembro (2004), Guerra ao Terror (2008), Sniper Americano (2014), Cães de Guerra (2016), Na Mira do Atirador (2017) - todos parecem revolver sobre o mesmo tema: os Estados Unidos e suas frequentes intervenções mundo afora faz mais do que apenas elencar monstros: também os cria. 

E agora Vice se mostra como o filme sobre o arquiteto da Guerra ao Terror, o homem que propiciou um custo humano de 600.000 vidas, redefiniu regras e definições de tortura e criou um vácuo de poder no Iraque ao derrubar a ditadura de Saddam Hussein que acabaria por dar oportunidade para que o ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) tomasse anos mais tarde o norte do país, criasse um Califado e transformasse a região em um lugar ainda pior para se viver graças à execuções, estupros e sequestros em nome de uma guerra santa, impulsionado fenômenos recentes como os refugiados em massa que se espalham pelo mundo. 

Para McKay e Bale, tudo parece ter saído e desencadeado feito efeito borboleta através da mente de Cheney, composto aqui como um homem medíocre bêbado por poder. McKay não poupa o bom humor em lembrar que essa é sua interpretação dos fatos e faz piada com momentos íntimos de Cheney que ninguém tem como saber (como as suas tramóias conspiradas com Lynn antes de dormir substituídas por diálogos de Shakespeare, por exemplo) e Bale nos lembra que Cheney é sobretudo um homem medíocre que sempre quer mais, sem tomar precauções (como mostram os frequentes infartos sofridos ao longo das décadas ativo), agindo como um verdadeiro glutão político (é sugerida a relação entre o petróleo iraquiano e os lucros monstruosos da Halliburton).

O filme é praticamente um A Grande Aposta 2, sendo rápido nas suas idas e vindas, didático em suas narrações em off e frequentemente fazendo graça das falhas morais de seus personagens. Garantindo esse “jogo ganho”, McKay também escorrega ao contar uma história grande demais, dedicando boa parte do tempo da narrativa aberta pelo atentado de 11 de setembro a como ele chegou até ali e postergando o conflito principal de sua obra em quase uma hora. 

Além disso, fica óbvio assistindo que McKay e Bale não querem estudar o personagem Cheney, imaginar o porque de seus atos, ou nada assim. Enquanto séries políticas como House of Cards implicam uma exploração da tridimensionalidade de seus vilanescos personagens, Vice é uma crítica, acima de tudo. O personagem é esvaziado para dar o tom da fábula cuja grande moral não é apenas sobre criarmos os monstros que odiamos, mas também a responsabilidade da sociedade civil em ter colocado o monstro lá.

Hoje, Cheney é odiado (terminou seu governo com 13% de aprovação), mas é bom lembrar que, mesmo sendo responsável pela crise do subprime, pelo colapso de bancos e o custo humano e caos políticos criados pela guerra, sua chapa foi eleita duas vezes. E o filme aponta isso claramente, em discurso que Bale chega a olhar para a câmera e justifica de maneira maquiavélica que apenas fez o que lhe foi requisitado enquanto liderança política.

Mas com o ritmo atrapalhado e sensação de material requentado, guiando atores no limite da caricatura e o tempo todo interrompendo a comédia para dar observações sérias fazem com que o filme perca o próprio senso de ironia que preza tanto. McKay quer tanto  fazer um conto preventivo (cautionary tale) que abre mão de qualquer fluidez em alguns pontos, agindo quase como um “paladino democrata” para “debulhar” os “crimes” de Cheney. O próprio parece reconhecer isso, como mostra a hilária cena pós-créditos.

Mas é claro, isso não salva o filme de ficar no meio do caminho entre uma desconstrução pura é ácida (como era a comédia sombria) e o drama forçado, constantemente mal-resolvido, reduzindo seu personagem nada mais além da caricatura do medíocre megalomaníaco. E, vale dizer aqui, a visão de Adam Mckay já foi mais incisiva e, acima de tudo, mais orgânica, antes de querer “jogar o jogo” da indústria cinematográfica com seus despeitos por retratações cômicas e seus sisudos e dramáticos contos morais. Metade mais do mesmo do próprio diretor, metade mais do mesmo genérico, Vice patina do início ao fim.

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