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Críticas

Cineplayers

Ferrara reflete sobre o mal.

9,0

Os Viciosos (The Addiction, 1995) não é um filme fácil de se envolver. Não é nem por ser um dos filmes mais assumidamente e escancaradamente vanguardistas de Ferrara, onde toda e qualquer facilidade e artifício do cinema narrativo clássico é deixada de lado em prol da verdadeira viagem de estímulos sensoriais filmada em um preto e branco depressivo, ou pelo assunto que aborda, de forma ainda mais explícita que O Rei de Nova York (King of New York, 1990) ou Vício Frenético (Bad Lieuntenant, 1992): a maldade inerente do ser humano e sua busca eterna pelo êxtase, seja espiritual, sexual, afetivo. Apesar de ambos estarem entrelaçados, não são responsáveis entre si, e um não tem a culpa de o outro existir na dualidade humana. A busca pelo êxtase é o instinto, o princípio do prazer; a maldade é o choque que nasce entre esse princípio e o da realidade.

A posição dos personagens do Ferrara, e a do próprio espectador, que o diretor sempre iguala em nível de consciência e conhecimento dos fatos com os protagonistas, é terrível: estamos em um universo de escolhas, como bem já escreveram certos autores e pensadores citados nos filmes – Jean-Paul Sartre e William Burroughs entre eles –, mas a nossa vontade de potência confrontada com a brutal realidade nos condiciona a retaliação, sempre. Violência se paga com violência, pecados se pagam nas ruas, condescendência se paga com indiferença. Ferrara diz pela voz de Kathleen Conklin: não é isso que é curioso. É a simples falta de noção do peso das nossas escolhas. A não consciência da idéia de “o inferno são os outros”. Não há perdão para cada erro que cometemos e se nós não nos lembrarmos do passado, nós vamos repetir um por um.

Um dos maiores triunfos é repetido por aí afora dentre os que conhecem o filme: o vampirismo utilizado como metáfora para o vício. Não apenas em drogas, uma vez que nós somos todos viciados, nós somos todos vampiros e nós somos todos nulidades. “Nós não somos maus por causa do mal que fizemos, mas fazemos o mal porque somos maus”, frase dita a certo ponto no filme, sintetiza tantas sequências quanto possível: seja a jovem que olha assustada no espelho a marca da mordida que recebeu de Kathleen (em um exercício genial de campo e contracampo no mesmo plano, a loira inocente descobre a parte podre da essência humana e descobre-se como a morena viciada), seja em uma festa intelectual depredada por um bando de predadores marginais. No meio deles, Kathleen. Entre a ilusão e anti-ilusão (dados os enquadramentos pouco usuais e a montagem frenética e imprevisível), clássico e contemporâneo, Ferrara, pisando ao mesmo tempo no realismo cru e na estilização pesada das megalópoles, que se firmou, filme a filme, como o grande questionador e pensador do cinema americano e aqui, faz um dos filmes síntese de toda a carreira.

Toda a carga mórbida e negativa de Ferrara em momento algum é inocente, fanática ou infundada. Ao contrário; são obras que nasceram de profundas pesquisas, leituras, considerações e que escorrem na tela fluindo de forma penetrante e incisiva. A imagem no cinema nasce à base de luz; só diante da luz que pode-se revelar a verdadeira natureza de algo; nada revela-se por si (e se é revelado, é uma nulidade), mas devido a um encontro. E, sob as luzes do cinema, conhecemos a maldade, o êxtase, o vício. A contemplação e a contestação da grande pilha de ossos que vem se acumulando ano após ano e que os sobreviventes mordem e chupam até a medula. Plano do agressor, contraplano da vítima.

Logo após, a escolha pelo vício. É nas escolhas que está o único alívio; no final, a luz do cinema se apaga; voltamos à sombra. Mas o exercício fílmico é a consciência do encontro. Do questionamento de Ferrara com os valores do espectador, e o contrário logo então.

Não há êxtase em Os Viciosos. Não há o êxtase das sombras expressionistas de Frak White em O Rei de Nova York, ou o fervor religioso do abandonado tenente drogado em Vício Frenético, ou a consciência influindo na narrativa como em O Enigma do Poder (New Rose Hotel, 1998). Há o mal; há a busca; o vício; e a decisão. Todos influindo no ritmo pesado e truncado. Peças fragmentadas do êxtase? Ou quatro instâncias de maldade?

Talvez desse confronto nasça o cinema: o êxtase da consciência, a consciência do errado e de sua natureza; a oportunidade da busca.

Comentários (19)

Victor Ramos | terça-feira, 03 de Junho de 2014 - 23:51

O filme que veio após Os Viciosos, Os Chefões, note quantas vezes o personagem de Christopher Walken lamenta que sabe que vai para o inferno e mantém o seu semblante dolorido, como se isso fosse algo inevitável reservado para ele. Keitel nos pés da cruz gritando, chorando, sem saber a diferença entre a alucinação e o milagre. Dafoe em sua angústia e claramente mergulhado na reflexão sobre a ideia da inexistência. A crença é um dos temas recorrentes no cinema do homem, portando defender Os Viciosos como uma tese sobre isso soa meio vago, tendo em vista que, se esta é uma tese, ele possui outras, e na mesma década.

Vinícius Aranha | quarta-feira, 04 de Junho de 2014 - 00:00

Victor, é claro que todos os filmes do Ferrara expõem (ou justificam, sei lá) suas crenças pessoais. Mas, dos que vi ao menos (o que não inclui Os Chefões), o único que faz isso de maneira claramente teórica é Addiction.

Vinícius Aranha | quarta-feira, 04 de Junho de 2014 - 00:02

Vale lembrar que a história é toda narrada pelas teorias da protagonista cursando filosofia.

Victor Ramos | quarta-feira, 04 de Junho de 2014 - 00:35

Claro. De todo modo, não acho o filme ruim - não é o que venho levantando aqui, só para destacar.

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